Cansar e desistir é um privilégio que não temos
Acho que toda mulher que trabalha com futebol faz essa pergunta na frente do espelho semanalmente - se não diariamente. Ofendidas publicamente em coletivas, esmurradas na rua indo levar filho na escola, ameaçadas de morte através das redes sociais, lidando com inquéritos para tratar das ameaças, chamadas de vagabundas por ter uma opinião diferente da de um homem, ridicularizadas por nossa aparência - seja ela qual for -, humilhadas ao vivo por colegas de profissão. Estou listando fatos que ocorreram recentemente com muitas de nós e não apresentando uma lista de hipérboles escolhidas ao vento. Por que seguir? Por que, aliás, escolher esse ramo de atuação?
Não temos uma resposta que não seja a de que, apesar da dimensão de horror, a gente ama esse jogo. Amamos porque ele entrou em nossa corrente sanguínea desde cedo. Amamos porque escolhemos um clube para torcer e conhecemos, através dele, muitas alegrias. Amamos porque entendemos que o futebol explica a vida, em sua tragédia e glória. Amamos porque contar histórias que envolvem o futebol é uma forma digna de dar sentido à nossa existência.
Mas vale seguir mesmo diante de tanta violência?
Não temos muitos representantes com poder para mudar esse cenário. Surge uma Leila Pereira, que engatinha no aprendizado da luta das mulheres, e logo somos acusadas de parcialidade por nos alegrarmos com sua presença e suas ainda embrionárias ações. Não pode se alegrar não. Voltem a ser sérias aí. Contenham-se.
Vítimas da violência de ídolos e celebridades, não recebemos a solidariedade da nossa própria classe porque ela rapidamente se organizou para apontar o dedo para outra mulher que precisa ser enquadrada como responsável por nosso sofrimento enquanto lambemos, sozinhas, a ferida aberta pelo herói da vez.
Para cada uma de nós, seguir na luta não é uma opção, é apenas necessidade de sobrevivência. Não temos a alternativa de cansar e desistir, infelizmente. Não podemos cansar de reivindicar espaço, segurança, direitos e justiça mesmo sofrendo agressões diárias. Desistir seria aceitar nossa morte simbólica. Desistir é um privilégio que não temos.
Como não tem a bicha negra da periferia. Como não tem uma mãe, muito menos as mãe-solo (de pai presente ou ausuente). Como não tem a sapatão no semiárido. Como não tem o entregador de aplicativo. Como não tem o motorista precarizado.
Como diz um amigo querido, para a maior parte desse Brasil, se você não for radical você morre. O radicalismo está no cotidiano. A luta é diária. Cansar não é opção. Única alternativa é seguir.
Quando somos publicamente ofendidas por algum homem, quem é afastada temporariamente do trabalho somos nós. O agressor segue sua vida, protegido pelo pacto.
Na sociedade, qualquer tipo de crime contra mulher é relativizado, de estupro a assédio, de tapa na cara a assassinato. Encontram uma justificativa para que o agressor siga seu rumo. Do outro lado, estamos pegando empréstimo para blindar o carro (as que têm esse privilégio), fazemos reuniões com os advogados para ver se a ameaça de morte já foi investigada, vamos à delegacia, passamos por novos abusos, agora cometidos por quem deveria estar nos protegendo, prestamos queixa mesmo assim, buscamos o filho na escola, preparamos o jantar, verificamos se o facão está ao lado da cama como o rapaz na delegacia sugeriu que fizéssemos, dormimos com o coração disparado, começamos de novo no dia seguinte porque as crianças precisam ir para a aula. De noite tem rodada. Trabalharemos com esse jogo que tanto amamos. Contaremos novas histórias. A escolha da profissão se justifica. Até que alguém nos lembre, às vezes entre sorrisos, que não deveríamos estar ali.
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