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Trudruá Dorrico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Graúna não é Munduruku: contestando a homogeneização da autoria indígena

A escritora indígena Graça Graúna - Instituto Moreira Salles/Reprodução
A escritora indígena Graça Graúna Imagem: Instituto Moreira Salles/Reprodução

Colunista de Ecoa, em Bonfim (Roraima)

02/08/2023 04h30

Ao escrever, dou conta da ancestralidade, do caminho de volta, do meu lugar no mundo. Graça Graúna

Esta semana, dia 25 de julho, a escritora Graça Graúna, autora do poema acima, indígena do povo Potiguara denunciou em suas redes, via Instagram e WhatsApp, que seus versos publicados no ano de 2007, no Cadernos Negros, tiveram autoria atribuída ao escritor Daniel Munduruku, também indígena. O equívoco — publicado pela revista Reflexos de Universos, v. 47, n. 1, maio de 2023, à venda em formato impresso, com o tema "Povos Indígenas" — denota o descompromisso ou o racismo estrutural crivado no imaginário brasileiro de que todos os indígenas são indistinguíveis. Um ou outro, o equívoco recrudesce o debate sobre a importância da pesquisa acerca da autoria e identidade indígena, ainda, como podemos notar, desconhecidas e pouco buscadas no país.

O editorial da Reflexos de Universos anuncia que para celebrar os 47 anos de edição, dedica-se à homenagem "ao povo indígena". Tal afirmação no singular evidencia uma incompreensão acerca da pluralidade dos povos indígenas, anunciada sempre no plural, como Ministério dos Povos Indígenas e Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Outro sintoma de distanciamento da teoria indígena é a ideia de que a poesia deve "falar de nós e por nós". É fato que a pesquisa acadêmica outorga o direito a falarem sobre nós, sobre nossos textos, mas não dá o direito de falar por nós, porque esse ato viola nossas vozes e presenças simbólicas na literatura indígena e brasileira.

Reconhecer a autoria indígena, pilar da literatura indígena contemporânea, significa contestar o imaginário de tutela historicamente imposto sobre os povos indígenas no período republicano, a longa noite que perdurou de 1910 a 1988, superada juridicamente apenas com a promulgação da Constituição Federal. Concomitantemente, significa reconhecer a poética que cada poeta enseja como sujeito individual-coletivo pertencente a um povo originário.

Nesse sentido, autores como Graça Sena, Paula Anias e Cyro Mascarenhas, citados no artigo de Hermes Peixoto, não se enquadram dentro desse escopo, pois são autores indigenistas cujas autorias abordam povos indígenas. Não podem ser classificadas como literatura indígena, uma vez que não reivindicam a identidade nativa. Por outro lado, estão citados no texto os corpos originários Aline Pachamama, Eliane Potiguara e Graça Graúna que tensionam uma tradição de apagamento, exclusão e silenciamento neste (pluri)Brasil, suas obras sim, podem ser chamadas de literatura indígena.

Quem erra na referência da poeta Graça Graúna é Hermes Peixoto que neste dossiê disserta sobre a literatura indígena, e também é apresentado como editor. É a ele e aos demais envolvidos que esta coluna se direciona. Dia 27 de julho, o autor Hermes fez uma retificação diante dos pedidos da poeta e do eco de pesquisadores que defendem a autoria indígena. Poetas como Sony Ferseck e Fernanda Vieira estavam entre elas.

Graça Graúna reitera publicamente que este poema é parte de sua identidade. Em uma rápida pesquisa na internet é possível conferir o crédito da referência e constatar a legitimidade da autoria. A declaração da poeta você pode ler aqui, bem como conferir sua denúncia: https://www.instagram.com/p/CvIaU9GJgiZSpVFQiGT053uRKgRWImL183Htec0/

Graça Graúna é um dos faróis da literatura indígena. Sua tese que posteriormente virou o livro "Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil" (Mazza Edições, 2013) é um guia para estudantes indígenas da área de ciências humanas e outras. No site Templo Cultural Delfos, de Elfi Kürten Fenske, é possível acessar uma pesquisa bibliográfica se não completa, quase de Graça Graúna:https://www.elfikurten.com.br/2016/02/graca-grauna.html

As publicações poéticas de Graúna designam a força que a poesia indígena detém. Admiro muito a escritora e endossei seu pedido porque atribuir autoria a outros escritores indígenas de forma indistinta é um desrespeito a todos os escritores indígenas, pois nós sabemos de nossas identidades, a diferença da nossa propriedade intelectual, e o que elas significam.

A autoria indígena é hoje uma pele que vestimos para conectar os mundos ancestrais aos contemporâneos, bem como contestar cinco séculos de expropriações de nossas poesias. Este pedido - e qualquer um que reivindique nossa autoria - é sempre mais um na retomada da nossa dignidade.

Para conhecer mais Graça Graúna:

Minibio da autora: Indígena potiguara, Graça Graúna (Maria das Graças Ferreira) nasceu em São José do Rio Campestre, RN. Escritora, poeta e crítica literária, é graduada, mestre e doutora em Letras pela UFPE e pós-doutora em Literatura, Educação e Direitos Indígenas pela UMESP. Publicou Canto mestizo (1999), Tessituras da terra (2000), Tear da palavra (2001), Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil (2013), Flor da mata (haikais, 2014). Participa de várias antologias poéticas no Brasil e no exterior e é responsável pela página https://gracagrauna.com/

Instagram: https://www.instagram.com/tecidodevozes/

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