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Trudruá Dorrico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Neste Carnaval, seja criativo e não racista: indígena não é fantasia!

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/02/2023 06h00

Chegou a hora! O Carnaval já está entre nós e com ele chegaram as fantasias supercriativas de foliões que curtem a festa por todo canto do país. Até de "geleia da Shakira" o povo já se fantasiou.

Mas vale lembrar: certas "fantasias" não são fantasias! Por isso, nesta semana carnavalesca, eu, mulher makuxi e escritora anticolonial, quero dialogar com vocês sobre uma específica: a de indígena.

"Pode ou não pode?", "É só uma homenagem!", "No Carnaval pode tudo!" foram algumas máximas que me inspiraram a falar sobre este tema.

E, como diria a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), "é Carnaval, mas é luta!", o que denota a alegria e o compromisso de indígenas ao participarem dessa festa tão tradicional no país todo.

Indígena não é fantasia

Parto de uma opinião pessoal, de escutas de lideranças indígenas nas redes e também da minha própria vivência como mulher indígena. Apoio-me na fala da liderança pertencente ao povo Guarani, Kerexu, agora secretária de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas:

"O cocar, as pinturas e grafismos são elementos sagrados e carregam a história de diversos povos indígenas do Brasil, mas infelizmente são muito comercializados no Carnaval para pessoas não-indígenas. A fantasia de indígena fortalece o estereótipo racista e etnocida, sexualiza as mulheres indígenas e transforma o sagrado em mercadoria. Neste Carnaval use sua criatividade e não se fantasie de indígena. Viva a festa do povo brasileiro."

Trago outra opinião, lida no artigo "Tentando Regrar o Carnaval: índios, diabinhos e outros mascarados", de Fabiana Lopes da Cunha, que apresenta a tentativa de proibição da fantasia de "índio", no Carnaval de 1908, pelo então chefe da polícia da capital federal, o senhor Alfredo Pinto.

O argumento para a proibição era de que na marcha eram realizadas "práticas consideradas 'bárbaras' e cheia de 'africanismos', como o uso de animais vivos pelos foliões, e de sua vinculação com os 'cordões', com seus cantos inexpressivos e rimas 'detestáveis', incompatíveis com o 'caráter especial do festejo' e prejudiciais aos 'justos foros de cidade moderna". Diz ainda que "além de ambos serem malvistos e vinculados ao atraso, as fantasias que retratavam os caboclos ou indígenas eram obrigatórias nestes grupos".

A exclusão da fantasia de "índio" do Carnaval, nesta segunda citação, trata-se da própria exclusão indígena da elite brasileira, cuja capital era o Rio de Janeiro.

A associação à animalização e ao atraso (pré-cabralino, pré-moderno) com que eram classificados os povos indígenas foi a justificativa para o apagamento da presença da identidade originária nas agremiações.

É possível sentir a disparidade entre o pedido do chefe da polícia em 1909 e a fala da liderança Guarani em 2023. Kerexu investe na conscientização política que a fantasia da identidade traz como prejuízo aos povos e, sobretudo, às mulheres indígenas. É um combate à hiperssexualização e ao apagamento das tradições, bem como um apelo para respeitar o sagrado - cocar, grafismo e pinturas - cada vez mais banalizadas.

Afinal, qual o problema de se 'fantasiar' de indígena?

Adilson Moreira explicita os problemas de se fantasiar de identidades minoritárias e étnico-raciais: "Os estereótipos raciais negativos presentes em piadas e brincadeiras racistas são os mesmos que motivam práticas discriminatórias contra minorias raciais em outros contextos."

Com isso, podemos concluir que não, nem tudo é fantasia. Identidade não é fantasia.

Representada de uma perspectiva que endossa violências simbólicas - como selvageria, atraso, hiperssexualização - a fantasia da identidade (de minorias étnico-raciais em geral) torna-se apropriação e despersonalização do povo ou grupo étnico a que ela alude.

Neste pacote, então, encontram-se desumanização e desvalorização das identidades originárias, aumentando o prejuízo simbólico que os sujeitos pertencentes aos respectivos grupos se empenham em combater cotidianamente.

Importante lembrar que as fantasias que performam os sujeitos indígenas não são retratadas como contemporâneas. As profissões nunca são aludidas, ou sequer a luta contra os diversos segmentos extrativistas, ou os personagens criados em suas literaturas.

A imagem engessada é exatamente aquela vendida na história e literatura brasileiras, a do bom selvagem no passado, ou o indígena extinto. Nestas representações preferimos ficar ocultos.

Já que estamos falando de vestimentas, quando um não indígena usa vestimentas tradicionais no Carnaval e outras datas comemorativas, não torna-se ele próprio um sujeito nativo.

Então, por que a roupa (ocidental) é considerada argumento para a despersonalização da identidade indígena?

O caráter assimétrico entre as relações mostra que a identidade branca está em um lugar seguro quando veste a identidade do Outro, mas qualquer aproximação com a sua é motivo para perseguição e vigilância para que o Outro (aqui estou falando da identidade indígena) não tenha acesso livre aos códigos considerados civilizados - como a roupa usada na cidade.

Inúmeras fantasias homenageariam os povos indígenas, roupas customizadas de personagens literários, frases de efeito do movimento indígena, uma ala inteira de dançarinos indígenas ocupando espaços de desfile, entre outros.

Indígenas no Carnaval

Em tempo em que ocupamos um espaço mínimo na estrutura social do país - o primeiro Ministério dos Povos Indígenas, uma diretora wapichana na liderança da Fundação Nacional dos Povos Indígenas-, vislumbro a possibilidade de parcerias indígenas com diversas escolas de samba, com histórias que respeitem os povos nativos, com a participação de sujeitos nas concepções de desfiles, na confecção das fantasias, na composição das músicas.

O site Visibilidade Indígena ainda listou três motivos para continuar o diálogo neste tema, que vale a pena acompanhar.

O que queremos é participação, respeito e o resgate de nossa humanidade. É pedir demais?