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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Dor na mão e ruptura do tendão podem ser sinal de um mal que ataca coração

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

06/12/2022 04h00

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A dor nas mãos, acusada de ser uma síndrome do túnel do carpo, pode chegar bem antes. Ou, então, o tendão do bíceps, quase sempre ele, se rompe em um movimento bobo. Podem surgir mais problemas ortopédicos também, todos aparentemente sem muita razão. Cinco, dez anos depois, vêm outros sinais, mas dificilmente as pessoas ligam os pontos.

Passado esse tempo, a sensação de fadiga parece só piorar. O fôlego vai ficando a cada dia mais curto. As pernas, especialmente os tornozelos, vivem inchados. Os pés podem formigar do nada e as cãibras dão sua má surpresa a toda hora. Ao se levantar de repente, talvez a cabeça gire de tontura.

A barriga estufa, com aquela sensação de estar sempre pesada. Episódios de constipação se alternam com diarreias. A perda de peso é espantosa, já que os ponteiros da balança descem ligeiro. E brotam manchas roxas pelo corpo por qualquer bobagem.

Estes são apenas alguns dos sintomas de uma doença da qual, aposto, pouca gente ouviu falar: a amiloidose. E só por essa lista você já começa a entender a complicação, porque muitas outras condições são capazes de provocá-los, o que cria uma confusão danada.

Uns, porém, irão justificar o desconhecimento repetindo que os pacientes com amiloidose são tidos como raros. Mas essa ideia provavelmente é um enorme equívoco. Hoje fica cada vez mais evidente que há muitos casos de amiloidose mascarados de outras doenças, como a insuficiência cardíaca.

Só que, se ninguém descobrir que na verdade há uma amiloidose por trás, a pessoa poderá parar em uma cadeira de rodas por conta de uma neuropatia, desenvolver insuficiência renal ou morrer do coração, para citar só três dos possíveis finais dessa história. Aliás, se nada é feito, todos os desfechos são ruins de lascar.

"A ironia é que, por ser considerada rara, a amiloidose sempre foi pouco estudada nas faculdades de medicina, criando uma bola de neve em que ninguém se forma muito bem preparado para dar o seu diagnóstico, o qual costuma demorar de cinco a sete anos", afirma o cardiologista Evandro Tinoco Mesquita, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Cardiovasculares da UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói, no Rio de Janeiro.

Segundo ele, isso é triste porque atualmente a amiloidose tem tratamento. "Mas precisa ser iniciado o mais precocemente possível, porque impede o seu avanço, mas não corrige o mal que já foi feito", avisa o professor.

O que a dor nas mãos e o bíceps têm a ver com o assunto

A amiloidose acontece quando o organismo acumula proteínas que ele simplesmente não consegue destruir. Elas às vezes se juntam em um único canto e o estrago, então, fica localizado.

No entanto, muito mais comum é tomarem conta dos mais diversos tecidos, da cabeça aos pés, sem poupar órgãos importantes pelo caminho. Rins, pulmões, fígado, baço e intestino costumam ser bastante afetados, além de nervos. O coração, por exemplo, é vítima em seis de cada dez casos.

"Essas proteínas podem surgir em pacientes por volta dos 30 anos ou até mais jovens por causa de mutações genéticas hereditárias", ensina o professor Mesquita. "Mas também aparecem devido a outras doenças que provocam inflamação crônica ou como resultado do próprio processo de envelhecimento."

Olhando de perto, tudo é uma questão de dobradura. Isso mesmo. O nosso organismo — que é praticamente todo feito de proteínas e dependente delas para as mais variadas funções — vive reciclando essa sua matéria-prima. Ele as quebra para remontá-las, construir proteínas novinhas em folha e conforme as suas necessidades. A molécula recém-criada, então, se dobra como se formasse um origami perfeito para a sua finalidade.

Uma proteína amiloide, porém, é aquela em que a dobradura sai toda errada. O nome vem de amido, porque no passado achavam que a molécula deformada era um tipo de açúcar parecido com ele. Não é, viu-se depois, Mas o apelido pegou.

Há mais de trinta tipos de proteínas capazes de virar amiloides e provocar danos. Isso porque, defeituosas, elas não cumprem o seu papel — o prejuízo ao funcionamento do organismo já começa por aí. Pior: acabam se enroscando umas nas outras e formam fibrilas, fios enrijecidos e entremeados nos tecidos.

Não à toa, para falar só de coisas do coração, ele não só fica com a parede mais espessa como deixa de relaxar direito, literalmente endurecido. Palpita, sem bater direito, Óbvio que isso não é nada bom.

"Quando desconfiamos de amiloidose e fazemos algumas perguntas no consultório, com frequência a pessoa relata que teve síndrome do túnel de carpo, com muita dor em ambas as mãos. Ou lembra que se acidentou durante um treino que nem era pesado, rompendo o tendão do bíceps", conta a cardiologista Diane Ávila.

Nem sempre, claro, as proteínas anormais estão por trás desse tipo de situação dolorosa. Mas, quando elas começam a se formar, é como se tivessem uma tendência a emperrar em estruturas como esses tendões e o canal que liga os antebraços às mãos, o tal do túnel do carpo. Por isso, não custaria afastar a hipótese.

"Em um grande número de pacientes, essa seria a primeiríssima pista da amiloidose. E, portanto, uma chance preciosa de a gente investigar e, se confirmar a suspeita, iniciar o tratamento sem demora", explica Diane, que é doutoranda da UFF. Ela está lançando o livro "Amyloidosis and Fabry Disease" (Ed. Springer) para ajudar a suprir seus colegas de Medicina de informações sobre a doença. "Mas igualmente importante é a população ficar ligada", acredita.

O que deveria chamar a atenção

A médica, que é também coordenadora do Centro de Amiloidose Complexo Hospitalar de Niterói-Dasa, aponta situações que levantariam a suspeita de proteínas anormais se acumulando no coração e em outros órgãos.

"A intolerância a medicamentos para tratar hipertensão seria uma delas", diz. Quem tem amiloidose, ao usá-los, pode ver a pressão sanguínea cair demais.

Uma insuficiência cardíaca sem causa aparente — quando o exame do ecocardiograma não vê nada de muito errado no funcionamento do músculo cardíaco — é outra bandeira. "Idem, uma neuropatia provocando dores ou formigamentos sem causa", acrescenta a doutora.

Histórico de diabetes conta e, claro, como algumas amiloidoses são hereditárias, ter pessoas na família diagnosticadas com o problema ou que tiveram uma neuropatia que as deixou sem andar — mesmo sem você saber se era amiloidose — ou, ainda, que tiveram uma insuficiência cardíaca importante sem o médico encontrar o motivo.

Para diagnosticar

Além de testes para dosar proteínas no sangue e na urina, o clínico pode solicitar uma biópsia de tecidos do corpo para que, por meio do microscópio e com a ajuda de um corante, seja possível visualizar as fibrilas, aqueles cordões formados por proteínas mal dobradas.

Essa, porém, é só uma etapa, que confirma que a pessoa tem ou não tem amiloidose. "O desafio, a partir daí, é descobrir qual seria o tipo dessa doença", explica Diane Ávila. Sim, há vários, conforme a proteína precursora, isto é, aquela que passou a apresentar uma dobradura diferente. "E para cada tipo há um tratamento capaz de ser eficiente", informa a cardiologista.

O que faz o tratamento

Diane Ávila ainda era menina quando sentiu curiosidade pela primeira vez pela amiloidose, embora não fizesse a menor ideia do que era e só fosse se lembrar do assunto bem mais adiante, no período de residência médica, atendendo pacientes que pareciam ter insuficiência cardíaca, mas que na realidade carregavam proteínas dobradas de um jeito errado. "Eram bem mais frequentes do que qualquer um poderia supor", garante.

Na infância, uma vizinha muito amiga de sua mãe vivia com dores e formigamentos. "Até que, a partir de um ponto, sua qualidade de vida caiu vertiginosamente", ela se recorda.

Um dia, ouviu a mãe dizer que a mulher tinha sido encaminhada para um transplante de fígado para ficar boa. Naquela época, os médicos achavam que as proteínas defeituosas vinham todas de lá. "Agora sabemos que elas são produzidas em muitos lugares, até nos olhos", diz.

Por isso, a vizinha ficou bem por um tempo com o fígado transplantado. Mas o problema voltou, já que as proteínas anormais continuaram sendo produzidas em outros órgãos, e atacou seu coração.

Por sorte, os remédios atuais conseguem estabilizar todas as linhas de produção da proteína afetada, não importando onde estejam. "Mas não adiantam tanto se a doença já avançou", esclarece a doutora Diane.

Daí a importância de ficar com a pulga atrás da orelha e conversar sobre isso com o médico diante de um daqueles sintomas estranhos. Uma dor nas mãos, por exemplo, mais do que chata, pode não ser nada inocente.