Lúcia Helena

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Reportagem

Câncer de intestino: nem sempre dá para colonoscopia enxergá-lo. E agora?

Cortar o mal pela raiz: a expressão descreve muito bem o que faz um endoscopista ao avistar um pólipo na mucosa intestinal. Ele não deixa para depois. Trata de eliminá-lo na mesma colonoscopia com que fez o flagrante.

Afinal, os médicos sabem que, com o passar dos anos, um pólipo de aparência inocente pode se transformar no segundo tumor que mais mata em todo o mundo, o câncer colorretal, isto é, no reto ou no cólon, as duas porções que formam o intestino grosso.

Mas, muitas vezes, essa oportunidade de ouro é perdida. E não só por falta de acesso ao procedimento ou porque algumas pessoas enrolam para marcá-lo. A chance de extirpar uma lesão pré-maligna se perde porque, na hora "agá", 26% dos pólipos, em média, acabam passando batido. Caí para trás ao ver a porcentagem graúda.

O especialista simplesmente não consegue distingui-los no monitor que exibe as imagens captadas pelo colonoscópio, o tubo flexível com uma câmera na ponta, que é introduzido pelo ânus para encontrar os tais pólipos pelo caminho do intestino.

"O olho humano tem lá suas limitações", comenta o gastroenterologista e endoscopista Austin Chiang. "Na superfície do intestino, tudo parece muito similar. Ora, nem todos os pólipos lembram um cogumelo. Alguns são achatados, difíceis de serem percebidos, ainda mais quando a colonoscopia é feita no final do expediente e o profissional já está mais cansado. O nível de treinamento do médico, claro, também conta bastante. "

Professor assistente da Thomas Jefferson University, nos Estados Unidos, doutor Chiang é também o especialista à frente da área de endoscopia da Medtronic, uma das maiores empresas do mundo em tecnologia na área da saúde. Na semana passada, ele estava em São Paulo para participar do MIND 360, evento que reuniu médicos de vários países para discutir inovações.

Uma delas, batizada de GI Genius, foi a que o doutor Chiang apresentou no evento: uma plataforma de inteligência artificial, acoplada ao endoscópio de sempre, capaz de apontar pólipos que, talvez, passassem despercebidos pelo olhar humano.

IA e alta resolução para caçar pólipos

"Para o paciente, não muda nada. O exame parece o mesmo de antes", diz Chiang. "Mas, na tela, vez ou outra o médico vê um quadrado verde cercando uma área onde a IA distinguiu um pólipo." A tecnologia foi aprovada em 2021 nos Estados Unidos e na Europa e, desde então, passou a ser usada por lá. No Brasil, deve aterrissar apenas no ano que vem.

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Em um dos estudos que levou à sua aprovação, a plataforma analisou 338 vídeos feitos durante o exame de colonoscopia. Conseguiu localizar pólipos com perfeição em 337 deles. Em um único exame, apenas, ignorou uma dessas lesões.

Enquanto a máquina trabalhava, o mesmo vídeo era exibido a cinco endoscopistas experientes, que tinham de apertar um botão sempre que surgisse a impressão de terem visto algo com jeitão de pólipo.

A IA reconheceu as lesões em um tempo, em média, 82% menor que os doutores. Mas a grande diferença não foi na rapidez: eles deixaram passar 32% dos pólipos. Com a plataforma GI Genius, porém, essa taxa foi menor, ficando em 15%. Ou seja, caiu para um pouco menos da metade.

'É fato que muitos equipamentos de endoscopia, agora, já vêm com recursos de inteligência artificial. Mas são caríssimos", afirma o cirurgião Armando Melani, que durante 19 anos chefiou a Unidade Colorretal do Hospital de Amor, em Barretos. Hoje, ele é diretor científico do IRCAD, um centro de treinamento em cirurgias minimamente invasivas, no Rio de Janeiro.

"A vantagem de uma plataforma como a GI Genius, é que ela poderá ser acoplada em equipamentos que já estão em uso há uma ou duas décadas em hospitais e centros de saúde do país, melhorando a qualidade das colonoscopias que são feitas por aí", opina.

Os equipamentos mais modernos — assim como os mais antigos que ganharam essa espécie upgrade lá fora — exibem imagens com uma resolução bem mais alta. "Isso facilita notar detalhes: uma diferença de contraste na coloração da mucosa pode entregar uma mudança sutil de relevo, por exemplo. E, então, a gente deduz que, exatamente ali, estaria um pólipo."

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Direita: um lado mais perigoso

Há três formas de pólipos. A plana, mencionada pelo doutor Austin Chiang, é a mais incomum. Enganadora, por se confundir com a própria parede do órgão, seu nome correto seria lesão da espraiamento lateral.

"Se ela está do lado direito do cólon, ficamos mais preocupados. Se estivesse à esquerda, o risco de se transformar em tumor maligno depois de um tempo seria bem menor", conta o doutor Armando Melani.

O pólipo séssil, por sua vez, lembra um arbusto. "Ou melhor, um tufo de grama", diz Melani, preferindo essa comparação. "Arbusto" ou "grama", se ele alcança entre 3 e 4 centímetros, o risco de virar maligno é de 20%.

Finalmente, o pólipo pediculado é aquele que lembra uma verruga — ou um cogumelo ou, ainda, uma couve-flor.

"Mas não é só a forma e o tamanho que fazem a gente antever o perigo", ensina Melani. "O tipo de célula que forma o pólipo é tão ou mais importante. O exame histológico feito posteriormente vai revelar se era, por exemplo, um pólipo hiperplásico, que é benigno, ou um adenomatoso, capaz de virar um câncer."

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Cai fora!

A dimensão do pólipo, porém, conta para o médico decidir como irá arrancá-lo. Se é dos menorzinhos, ele deve simplesmente laçá-lo com uma alça por onde passa uma corrente elétrica (como a que se vê na imagem desta coluna).

Já lesões planas ou lembrando um arbusto podem pedir que o médico injete soro por baixo, para que se elevem um pouco, afastando-se da parede do cólon. "Isso para a gente usar a alça sem medo de perfurá-lo", explica Melani.

Segundo o especialista, na maioria dos casos, tirar o pólipo é suficiente para dormir tranquilo, tendo de repetir a colonoscopia apenas dali a três ou cinco anos. "Até mesmo quando o pólipo já se tornou maligno, conforme a sua profundidade na mucosa, só retirá-lo na colonoscopia pode ser o suficiente."

Demora para crescer

Óbvio, dificilmente o olhar do médico deixa escapulir um pólipo mais grandalhão. "E o que me preocupa não é a lesão menor, de 2 a 3 milímetros, se ninguém a visualizou no exame. Isso porque a probabilidade de virar um câncer depressa é baixa", justifica o médico. "Em geral, a transformação para lesão maligna leva, em média, cinco anos. Mas as pessoas às vezes demoram mais do que isso para fazer um novo exame. Essa é a maior apreensão."

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Ou seja, dentro desse período de cinco anos, é esperado que a colonoscopia seja repetida. Atualmente, se a pessoa é saudável e não tem casos de câncer de intestino na família, esse exame é solicitado a partir dos 45 anos — antes, era só dos 50 e diante.

Até houve uma discussão recente se ele não deveria ser realizado mais cedo ainda, aos 40 anos, já que, em função principalmente de mudanças na alimentação, o câncer de intestino tem aparecido em pacientes mais jovens. "Mas aqui e em outros países, como os Estados Unidos, não haveria médicos o bastante para examinar toda a população, se a faixa etária fosse antecipada."

De todo modo, vale frisar: os pólipos que ficam imperceptíveis em um exame provavelmente serão flagrados na colonoscopia seguinte, ainda a tempo de você cortar um câncer pela raiz, se não relaxar com a remarcação do procedimento.

Por fim, esteja bem preparado

Outro ponto que você precisa saber: um preparo de exame mal feito, sem uma dieta especial seguida à risca na véspera, nem uma lavagem intestinal no capricho, tem relação direta com a não visualização de pólipos. Pode fazer total diferença, prejudicando o resultado.

Se restar um pouco de fezes na mucosa do intestino, haverá uma alta probabilidade de o especialista perder a chance de pegar um pólipo ou outro — e a inteligência artificial, idem.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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