Topo

Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Letramento e afetividade: o que o amor tem a ver com a escola?

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

03/02/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Minha mãe é uma mulher nascida nos anos 1960 e passou toda a infância no meio rural de uma cidade pequena do Espírito Santo. Ela conta muitas histórias de violências sofridas na escola onde tentou estudar.

Conta que, por gostar de subir em árvores e fazer atividades físicas, era chamada de "Maria homem" e sofria agressões, tanto por parte de colegas de sua idade, quanto pela professora. Minha mãe decidiu assumir a postura de revidar as agressões físicas e verbais que sofria no ambiente escolar. Resultado? Aos sete anos de idade, foi expulsa da escola e nunca mais voltou.

Na juventude, tentou se matricular no Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização, mas não via sentido no modo como o processo acontecia e não conseguiu se adaptar àquele formato.

Foram muitas as suas tentativas de retorno aos estudos —ela realmente queria muito estudar, mas sentia que eram muitas letras para aprender, muitas palavras para formar, muitas frases para compor e ao se deparar com um livro, sentia ansiedade por perceber a longa jornada a se fazer entre a formação de sílabas e a leitura de um romance.

Desistiu!

E desistiu porque o processo de alfabetização e letramento para ela passou pela memoria afetiva de ser expulsa da escola e ter seu corpo amarrado num padrão de gênero que dizia, por meio de agressões físicas, que boas moças não sobem em árvores nem jogam bola junto com os meninos. Ela apanhava todos os dias na escola, tanto de crianças quanto de pessoas adultas.

A escola onde tentou estudar lhe ensinou a temer qualquer processo de descoberta do mundo. Ensinou-a a não se maravilhar com as coisas nem a ter olhar crítico sobre injustiças. Durante muito tempo, ela se silenciou diante de qualquer opressão que sofria, pois aprendeu que quem pergunta apanha. Quem ousa é hostilizado. Quem tenta se movimentar é expulso.

Foi bem aos pouquinhos, já na idade adulta, com outras mulheres, que ela aprendeu a perguntar coisas como: Por que nós, mulheres e meninas, não podemos jogar bola? Por que meninas e meninos vivem proibições em alguns campos da vida? Por que eu não pude estudar? Por que existe injustiça contra as pessoas que perguntam?

Daí percebeu que tudo isso era parte de uma estrutura social construída na base da exclusão e desrespeito à tudo que foge de uma norma.
Minha mãe tentou se encaixar em modelos educacionais de alfabetização de pessoas adultas. Tentou por diversas vezes e em diversos lugares, mas seu trauma de adentrar numa instituição de ensino seguia vivo na memória, mesmo agora tendo muita gente gentil a convidando para estudar.

Sua dificuldade não residia na quantidade de letras a se aprender, mas na lembrança das violências institucionais sofridas. Ela desistiu de aprender a ler e escrever...

Em 2018, minha mãe se tornou avó pela primeira vez e estabeleceu com meu sobrinho uma relação educacional muito linda. O ensinou a comer sozinho, a correr pela casa, a gargalhar, a descer e subir escadas se apoiando na parede. Ela se tornou, de fato, uma educadora.

Meu sobrinho é uma criança que está no espectro autista e sempre foi apaixonado por letras e números. Ele passa horas brincando com seu alfabeto de E.V.A. e adora apresentar o som das letras para minha mãe. Ela e ele brincam por horas, arrastando as letrinhas pelo chão e colocando-as em ordem alfabética. Ele sinaliza, de forma muito cuidadosa, alguma inversão da ordem das letras quando ela erra: "Não, vovó, de novo".

Um dia, sem querer, ela percebeu...

Tinha aprendido a ler.