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Fé violada: 5 mulheres abusadas por líderes religiosos relatam dor e medo

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Imagem: Arte/UOL

De Universa, do Rio de Janeiro

07/11/2022 04h00

João de Deus, Ikky de Medeiros, Jair Tércio Cunha Costa e outros líderes espirituais até então conceituados já foram condenados por seus crimes, mas as vítimas seguem carregando os traumas deixados pelos abusos e violências que sofreram, convictas de que alcançariam aquilo que almejavam.

Embora sejam adeptas de diferentes crenças e religiões, cinco mulheres reunidas por Universa se encontram na dor da pior experiência que passaram em suas vidas. Seus gurus se aproveitaram de sua fé para violá-las sexual e psicologicamente sob argumento de que tudo aquilo era em nome de um bem maior.

Hoje, algumas nem sequer conseguem chegar perto de um templo e tentam de outras formas curar as consequências desses traumas. "Podemos perder tudo na vida, mas a única coisa que a gente insiste em não largar é a fé. Isso é inabalável, mas ele [o líder] te deixa sem nada", afirma uma das vítimas.

A seguir, elas contam como esses criminosos da fé agiam.

"Ele veio igual a um bicho para cima de mim"

Ana Paula São Tiago, 39 anos, tinha 26 quando junto ao pai visitou a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), pela primeira vez. Ele tinha sido diagnosticado com câncer no cérebro, e a família acreditava na cura por meio do médium João Teixeira de Faria, 79, o João de Deus. Os estupros começaram dias após sua chegada.

"Ele me chamou em sua sala, e quando entrei, trancou a porta. Disse que eu tinha muita energia de cura, e que faria tratamento em mim para curar meu pai. Ele me botou de costas e passou a mão na minha bunda. Quando olhei para trás, já estava com a calça aberta e o órgão ereto."

Mulher com mão no rosto - Arte/UOL - Arte/UOL
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"Congelei. Ele sentou na poltrona alta e colocou a minha mão no órgão dele. Eu permaneci em pé até desfalecer. Ele veio igual a um bicho para cima de mim. Depois, fomos até o banheiro nos lavarmos. Sinto até hoje o cheiro horrível de sabonete hidratante dele."

Ana Paula conta que pediu ajuda para algumas pessoas, mas foi avisada de que uma estrangeira tinha feito as mesmas acusações e sumiu. Ela então resolveu voltar para o Rio de Janeiro, onde vive, mas antes passou na casa para se despedir de João, a pedido do pai.

"Quando o João me viu, pediu para eu ir a sua sala novamente. Entrei e falei que ele não poderia ter feito aquilo, mas justificou que eu era a causa do câncer do meu pai, e que precisava colaborar para vê-lo curado. E fiquei mais uns meses."

Em poucos meses, o pai morreu. Quando voltou para casa, ela entendeu que foi estuprada.

Procurei advogado, ginecologista e uma terapeuta de vidas passadas e entendi que não existe tratamento espiritual com um beijo ou penetração.

Em 2015, Ana Paula foi em sua página do Facebook contar o que aconteceu, sem citar o nome de João de Deus, e foi procurada por vítimas que se identificaram com a história. Mas as denúncias contra João vieram à tona em 2018. Ele foi condenado a mais de 44 anos de reclusão por crimes sexuais. Também foi condenado a três anos de reclusão por posse irregular de arma de fogo. João, que nega todas as acusações, cumpre prisão domiciliar em Anápolis.

"O que ele fez, além do abuso sexual, foi abusar da fé, que é o que a gente tem de mais puro."

Ameaça de retaliação espiritual

Medo - Arte/UOL - Arte/UOL
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A ativista social Tatiana Badaró engravidou aos 16 anos. Na época, em 2002, o então namorado frequentava a seita de Jair Tércio Cunha Costa, criador da Fundação Ocidemnte, uma organização científica de caráter educativo. Ele era ainda grão-mestre da grande loja maçônica na Bahia, e Tatiana tornou-se sua seguidora.

Jair convenceu a então adolescente de que ela precisava de seus conselhos. Houve até interferência na sua vida acadêmica: Tatiana deixou de estudar medicina para fazer pedagogia por ordem dele.

Aos 21, ela foi convencida de que precisava da energia de cura de Jair. Foi quando aconteceu o primeiro estupro. "Eu não enxergava aquilo como estupro, porque achava que estupro é aquele que o cara te puxa de forma violenta. Descobri vários outros abusos sexuais e entendi que aquilo era um crime e rompi com tudo."

No momento em que decidiu largar a seita, em 2014, Tatiana e a filha passaram a ser vigiadas: ela recebia fotos suas e da menina nos lugares que frequentavam: era um recado de que tinha alguém observando. Ela, então, fugiu para Florianópolis.

De volta à Bahia, em 2020, foi às redes sociais contar tudo que sabia sobre Jair Tércio. Desde esse momento começaram a surgir relatos de outras vítimas. No total, houve 16 denúncias contra ele.

Jair é acusado de crimes de lesão corporal grave, charlatanismo, abuso sexual e estupro de vulnerável. À Justiça, ele alegou que os casos sexuais foram consentidos, mas está foragido desde setembro de 2020. Hoje, Tatiana é ativista pela causa das mulheres e faz pós-doutorado em influência indevida em meios religiosos: "Recomendo que ao se aproximarem de uma religião, as fiéis se mantenham perto de uma rede de apoio."

"Tive um filho do meu estuprador"

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Era 2013 quando Camila*, 35 anos, e seu então companheiro procuraram Heraldo Lopes Guimarães, 57, o Pai Guimarães de Ogum, no seu templo de umbanda Estrela Guia, em São Paulo. Juntos havia cinco anos, os dois estavam com dificuldade de engravidar, e ela depositou em Heraldo a solução para seus problemas.

Heraldo disse à Camila que seu antigo pai de santo lhe fez um trabalho espiritual ruim, e que ela morreria se não seguisse suas orientações. "A história era que meu espírito precisava manter relação sexual com ele porque seu sêmen tinha a energia da vida."

Fragilizada, a vítima acreditou e os estupros aconteciam numa pequena sala do templo, em São Paulo. Heraldo dizia que se ela comentasse com alguém o tal trabalho espiritual não surtiria efeito. Ela também foi convencida a deixar seu companheiro e a morar com seu algoz: "Ele se colocava como figura de pai e protetor, e dizia que a única forma de cuidar de mim era ficando com ele."

Foram seis anos de relação, em que Camila vivia em cárcere privado, era proibida de sair sozinha de casa. Quando ficou grávida do criminoso, foi proibida de se consultar com médicos homens. Hoje seu filho, de 7 anos, tem autismo. "Sim, eu tive um filho do meu estuprador".

Bloqueio à fé

A denúncia contra Heraldo veio em 2019, quando Camila descobriu que ele estuprava outras mulheres, e se reconheceu como vítima. "A gente se culpa, se acha burra e tem certeza de que o problema é a gente. É assim que eles conseguem fazer você permanecer ali dentro."

E nada ficou mais abalada que sua fé. "A gente pode perder tudo na vida, mas a única coisa que a gente insiste em não largar é a fé. Isso é inabalável, e ele te deixa sem nada. Pisei em dois terreiros, em momentos diferentes, mas não consegui seguir, porque questionava tudo. Criei um bloqueio."

Heraldo é acusado pelo Ministério Público de São Paulo de estuprar sete mulheres e uma adolescente em supostas sessões espirituais entre 2011 e 2016 e está em prisão domiciliar por tempo indeterminado. Segundo sua defesa divulgou à época das denúncias, em 2021, "todas as acusações são falsas, com motivações financeiras e encabeçadas por sua ex-companheira."

"Fazia eu me conectar com a espiritualidade a partir da dor"

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Com problemas familiares e psicológicos, Vanesca Lima, 31 anos, buscou ajuda do guru espiritual Pedro Ícaro de Medeiros, conhecido como Ikky, em 2017. Ele mantinha uma seita conhecida como Afago, em Fortaleza (CE), e distribuía alimentos para pessoas em situação de rua.

Até que um dia Ikky criou um grupo para ensinar terapias holísticas, com encontros aos fins de semana. Nessas reuniões, ele fazia os presentes contarem detalhes de suas vidas. Também adotava rituais violentos como troca de tapas: "Se não obedecêssemos, ele falava que tinha visões de que alguém iria morrer", detalha Vanesca.

Em poucos meses, ela foi convencida a morar na comunidade mantida por Ikky, e lá era isolada dentro de um quarto para, nas palavras dele, "crescer através do sofrimento." Ikky também convencia os homens de que seu esperma tinha o poder da cura, e os estuprava.

Em 2020, algumas vítimas de violência sexual criaram uma página no Instagram para denunciar os crimes. E foi lendo esses relatos que Vanesca se reconheceu como vítima. Com isso, o Ministério Público chegou a 50 jovens de diversas partes do país que denunciaram Ikky por abusos sexuais, físicos e psicológicos.

Em março desse ano Ikky foi condenado a 34 anos de prisão por estupro de vulnerável, e a defesa recorre. Quanto à violência psicológica contra Vanesca e as demais vítimas, a Justiça entendeu que o grupo era "possuidor de discernimento próprio do homem médio" para se deixar ser ludibriado por um charlatão. Hoje, Vanesca não mais acredita em instituições religiosas.

"Minha fé ficou totalmente abalada, porque antes ele fazia a gente se conectar com a espiritualidade a partir da dor. Você vai na perspectiva de se curar e sai muito mais machucada."

"Tinha 11 anos quando me pediu para fazer sexo"

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Nicole* tinha 11 anos quando passou a frequentar um centro de umbanda em Niterói, na região metropolitana do Rio, junto à mãe. Em pouco tempo, o pai de santo do local convenceu a família de que a criança precisava se tratar espiritualmente, e a chamou para uma consulta sozinha em sua sala.

"Quando entrei, ele fingiu que estava rezando, mas em seguida me beijou e tocou meus seios. Fiquei sem entender o que estava acontecendo, enquanto ele dizia que aquilo fazia parte", descreve a estudante de veterinária, hoje com 22 anos.

"Até que ele falou para deixá-lo fazer sexo comigo. Comecei a chorar. Ele me abraçou e disse que estava só me testando e avaliando o meu nível de perturbação. E acreditei."

Com o passar dos anos, o homem também passou a frequentar a sua casa, e Nicole inventava desculpas para chegar tarde da escola e não encontrá-lo. Com o desespero vieram automutilação e tentativa de suicídio. Ela foi internada em um hospital, mas o pai de santo convenceu a família de que se tratava de doença espiritual. A mãe descobriu os estupros um ano após esse episódio, quando a adolescente já tinha 17 anos.

"Ele dormia em casa, e um dia tive uma crise de pânico enquanto abusava de mim. Levantei, coloquei a roupa e subi na laje para me esconder. Ele foi atrás de mim fechando o cinto e uma vizinha presenciou a situação."

Nicole tentou contar do abuso para sua mãe chegou, que só acreditou quando a vizinha falou o que viu. Questionado, o pai de santo disse que a menina era quem o procurava.

Nicole diz que escolheu não denunciá-lo porque não se sentia segura para o que poderia enfrentar, como julgamentos e retaliações. Hoje ela faz acompanhamento psicológico e até tentou se encontrar em outro centro, mas teve crise de pânico e não voltou. "Ainda tenho a minha fé e acredito em Deus, mas não em instituições religiosas, porque existem pessoas ruins em posições de poder."

Líderes se aproveitam da fragilidade das vítimas

Especialista em traumas, a psicóloga Daniela de Souza Ferreira ensina que geralmente quem procura uma instituição religiosa já está em situação de vulnerabilidade, e é dessa fragilidade que os criminosos se aproveitam, usando artifícios como retaliação espiritual caso não sejam atendidos.

Mulher com rosa - Arte/UOL - Arte/UOL
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Daniela atenta ainda que por também envolver violência psicológica, há a dificuldade tanto da vítima como da Justiça em reconhecer casos de charlatanismo. Por isso a importância de buscar ajuda.

"No caso de conjunção carnal, tem como provar o estupro com exame. Mas quando falamos da parte emocional e psicológica, mesmo com laudo psiquiátrico, não se dá tanto peso."

"A vítima é julgada e criticada por ter deixado acontecer. E o atendimento psicológico vai ajudá-la a levar uma vida sem tantos gatilhos, e até a encarar elementos como artefatos religiosos sem sofrimentos", ela finaliza.

*Para preservar a identidade das vítimas, algumas tiveram seus nomes alterados.