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É mentira que Maria da Penha não sofreu tentativa de feminicidio; entenda

Ricardo Ventura, youtuber, reproduziu informações falsas sobre caso Maria da Penha em podcast da Jovem Pan - Reprodução/Instagram
Ricardo Ventura, youtuber, reproduziu informações falsas sobre caso Maria da Penha em podcast da Jovem Pan Imagem: Reprodução/Instagram

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

06/06/2022 17h17

Circula desde a última semana nas redes sociais um vídeo feito durante a gravação do podcast "Mais Um Podcast", da Rádio Jovem Pan, em que o youtuber Ricardo Ventura mente ao dizer que Maria da Penha Fernandes, farmacêutica que dá nome a Lei Maria da Penha, não teria sido vítima de violência doméstica e nem de duas tentativas de feminicídio pelo ex-marido, Marco Antonio Heredia Viveros —afirmações que não correspondem à realidade.

Desde 2002, o relatório elaborado pela OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre o caso Maria da Penha está disponível para qualquer pessoa que quiser lê-lo. Trata-se do relatório 12.051 da OEA, intitulado "Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil".

Durante a gravação, Ventura diz aos outros comentaristas do programa, todos homens, que Maria da Penha teria sido vítima de um assalto, que a deixou paraplégica. Na realidade, a farmacêutica, hoje com 77 anos, perdeu movimentos ao ser atingida por um tiro disparado pelo então marido, que declarou à polícia que o disparo teria sido feito durante uma tentativa de assalto, mas essa versão foi desmentida na época, pela perícia, e ele foi condenado pelo crime.

"Muitos vão falar que foi uma questão doméstica [referindo-se a violência doméstica]. Mas sabem por que ela ficou cadeirante? Foi um assalto na casa", falou. Ventura disse, ainda, que Maria da Penha teria denunciado violência doméstica apenas por vingança, após ter descoberto uma traição do então marido —o que, vale reforçar, também é mentira.

Maria da Penha foi vítima de tentativa de feminicídio pelo então marido duas vezes, ambas em 1983, e passou 19 anos em busca de reparação na justiça brasileira e também na justiça internacional. Sua história foi contada repetidas vezes na imprensa, em documentários e em livros, como sua biografia "Sobrevivi? Posso Contar" (ed. Armazém da Cultura, 1994) —e também aqui, em Universa.

Procurados por Universa, tanto Ricardo Ventura quanto a Jovem Pan não responderam até o fechamento desta reportagem.

Maria da Penha ficou paraplégica aos 38, ao levar um tiro do então marido, Marco Antonio Heredia Viveros - Divulgação/Instituto Maria da Penha - Divulgação/Instituto Maria da Penha
Maria da Penha ficou paraplégica aos 38, ao levar um tiro do então marido, Marco Antonio Heredia Viveros
Imagem: Divulgação/Instituto Maria da Penha

Ataques tentam fragilizar direitos das mulheres

Em entrevista a Universa, Regina Célia Barbosa, vice-presidente do Instituto Maria da Penha, afirmou que essa não é a primeira vez que a história de Maria da Penha é alvo de informações faltas e ataques, o que vem ocorrendo permanentemente nos últimos três anos —mas lembrou que o caso passou quase duas décadas sendo investigado dentro e fora do Brasil e que, por isso, não há espaço para lançar dúvidas sobre a veracidade de sua história.

No ano passado, por exemplo, o deputado estadual Jessé Lopes (PSL-SC) recebeu Marco Antonio Heredia Viveros, o agressor de Maria da Penha, em seu gabinete na na Alesc (Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina). Na ocasião, o parlamentar divulgou uma foto do encontro em suas redes sociais, afirmando que Viveros "contou sua versão sobre o caso" e que "sua história é, no mínimo, intrigante".

"Este não foi um caso avaliado de forma abrupta, irresponsável, na calada da noite. Ficou 19 anos sem respostas e passou não só pelo crivo dos magistrados brasileiros, que por duas vezes condenaram o agressor, como pelo crivo da Organização dos Estados Americanos, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos".

Regina afirma que estes ataques "tentam fragilizar os direitos das mulheres", e que isso é muito grave, especialmente em ano de eleição, "momento em que tentamos fortalecer o espaço político para mulheres".

Conheça a história de Maria da Penha

Dupla tentativa de feminicídio

Maria da Penha era casada com o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros há alguns anos quando começou a ser agredida por ele. Segundo a biografia dela publicada pelo Instituto Maria da Penha, ele se exaltava com facilidade e era agressivo não só com a esposa, mas com as três filhas do casal, que na época eram crianças.

Em 1983, ela foi foi vítima de duas tentativas de feminicídio por parte de Marco Antonio.

Primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia —foi essa agressão que a deixou paraplégica, aos 38 anos. Na época, o agressor declarou à polícia que o casal tinha sido vítima de uma tentativa de assalto, mas essa versão foi desmentida pela perícia. Ele, inclusive, insistiu para que a investigação sobre o suposto assalto não fosse levada adiante.

Quando Maria da Penha voltou do hospital para casa, quatro meses e duas cirurgias depois, Marco Antonio a manteve em cárcere privado por duas semanas, período em que tentou eletrocutá-la durante o banho.

Agressor foi condenado, mas não cumpriu pena

Após a segunda tentativa de feminicídio, Maria da Penha conseguiu sair de casa com as filhas e levou o caso à Justiça.

Como não havia legislação específica para violência doméstica ou feminicídio, ela esperou oito anos até o primeiro julgamento, que aconteceu apenas em 1991 —na ocasião, seu ex-marido foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas a defesa recorre e ele deixou o fórum pela porta da frente, em liberdade.

Em 1996, em um novo julgamento, Marco Antonio foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão, mas novamente não cumpriu a pena.

Caso Maria da Penha chega à OEA

A falta de respostas do Estado levou Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher a denunciar o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Em 2001, o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras —e recebeu três recomendações:

  • Dar uma resposta rápida e efetiva ao caso de Maria da Penha Fernandes, fazendo cumprir a condenação de seu agressor;
  • Fazer "investigação séria, imparcial e exaustiva" a respeito das irregularidades e atrasos no caso;
  • Assegurar à Maria da Penha uma reparação simbólica e material por não oferecer recurso rápido e efetivo, por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos e por impedir com esse atraso a possibilidade indenização civil;
  • Reformar as leis do país de forma a evitar a tolerância e o tratamento discriminatório à violência doméstica contra mulheres no Brasil.

Nos anos seguintes, o Estado do Ceará indenizou Maria da Penha e o Governo Federal batizou com o seu nome a lei sancionada em 2006, que protege mulheres da violência doméstica, como reconhecimento de sua luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres.