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'Ele foi preso após me ameaçar com faca': medidas protetivas funcionam?

Número de medidas protetivas teve alta notável nos últimos anos - Getty Images/iStockphoto
Número de medidas protetivas teve alta notável nos últimos anos Imagem: Getty Images/iStockphoto

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

29/04/2022 04h00

Ana Paula conseguiu uma medida protetiva que impedia o ex-marido de se aproximar dela, mas, mesmo assim, ele invadiu a casa dela com uma faca, para tentar matá-la. O mesmo aconteceu com a Mayara: apesar de protegida por uma protetiva, ela foi agredida verbal e fisicamente pelo ex, com xingamentos, ameaças, cuspidas e até uma tentativa de atropelamento. Embora essas histórias sejam semelhantes, elas têm finais diferentes: o agressor de Ana Paula foi preso por violar a medida protetiva e, quando foi solto, nunca mais entrou em contato com ela; já o de Mayara continua a perseguindo, mesmo depois de diversas denúncias. "Ele está solto, e eu sob ameaça", fala.

As medidas protetivas de urgência são uma das principais ferramentas de proteção às mulheres vítimas de violência previstas na Lei Maria da Penha, em vigor há 15 anos. Mas essa decisão judicial realmente protege as mulheres?

Os números dizem que sim: segundo a pesquisa "Raio-X do Feminicídio", divulgada pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) em 2018 e ainda uma referência no tema, 97% das mulheres mortas no Estado por um companheiro ou ex não tinham medidas protetivas. Há histórias, no entanto, que contrariam os dados e mostram que o documento, por si só, não garante a segurança da vítima —caso de uma técnica de enfermagem de Cabo Frio (RJ) que chegou a registrar 11 boletins de ocorrência contra o ex, até que ele fosse preso, e de uma professora de Campo Grande, vítima de feminicídio mesmo com uma medida protetiva em vigor.

"Não há dúvidas de que as medidas protetivas são ferramentas importantes para evitar mortes, mas, embora a lei seja excelente do ponto de vista jurídico, ela falha na hora de sair do papel e ser colocada em prática", resume Fabiana Dal'Mas, promotora de Justiça especializada no enfrentamento à violência doméstica do MP-SP.

A promotora Valeria Scarance, professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e autora do livro "Lei Maria da Penha: o Processo no Caminho da Efetividade" (ed. Juspodivm), concorda. E completa: "Mais do que mudar a lei, é preciso conscientizar as autoridades que aplicam a lei".

As duas juristas explicam que a eficácia ou não de uma decisão judicial que afasta o agressor da vítima, por exemplo, depende do funcionamento de outros atores: iniciativas como a Patrulha Maria da Penha e a Guardiã Maria da Penha, que fiscalizam o cumprimento das medidas protetivas em algumas cidades brasileiras e criam relatórios para a Justiça, que a partir dessas informações pode aumentar o tempo de funcionamento da medida protetiva, pedir prisão de um agressor ou encaminhar a vítima para um abrigo, por exemplo.

Além disso, diz a promotora, é preciso que toda uma rede de serviços de proteção esteja preparada para receber a vítima, desde os policiais que fazem o primeiro atendimento da mulher até a Justiça e o Ministério Público.

Leia, abaixo, as histórias das duas mulheres citadas no início deste texto: a comerciante Ana Paula Nachbar Camargo, 38, que viu o ex-marido ser preso após ele descumprir a protetiva; e a empresária e professora Mayara Calderone, 40, ainda perseguida por seu agressor, apesar das inúmeros denúncias de descumprimento judicial. Na sequência, conheça outras medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha e entenda como elas funcionam.

"A medida funcionou: ele foi preso e nunca mais o vi"

Ana Paula foi vítima de agressões do ex-marido durante anos, mas o casamento chegou ao fim mesmo em 2010, quando ela foi atacada fisicamente com o filho de três meses nos braços. Na ocasião, como contou a Universa, só sobreviveu porque foi salva por um vizinho, que pulou o muro e impediu que o agressor continuasse batendo nela e ameaçando a criança.

"Gritei por socorro até que o vizinho apareceu. Só me lembro dele tirando meu ex-marido de cima de mim, pegando meu filho no colo e me mandando correr", diz. Todos foram para a delegacia —vítima, agressor e testemunha. Lá, Ana prestou queixa e pediu uma medida protetiva, que foi violada pouco tempo depois, quando o ex-marido entrou em sua casa, de madrugada, armado com uma faca. Ela conseguiu escapar, e ele foi preso por descumprir a decisão judicial.

"Achei que eu estava segura [com a medida protetiva], não achei que ele invadiria minha casa. Mas, quando ele fez isso e tentou me matar, a medida funcionou: ele foi preso e, depois que saiu da cadeia, nunca mais o vi. Às vezes ele pergunta dos filhos para a minha mãe, mas tem medo de vir aqui perto, me encontrar na rua, e ser preso de novo", conta.

"Ele está solto, tenho que fazer minha própria proteção"

Mayara, por outro lado, tem uma impressão bastante diferente da de Ana Paula.

Ela conta que, quando decidiu colocar fim a um casamento de cinco anos, seu ex-marido "não aceitou, fez da vida um filme de terror". "Ele me ameaçava o tempo todo. Fez montagens com fotos minhascomo se eu fosse garota de programa e espalhou pela cidade, sumiu com as crianças [eles têm dois filhos, de 10 e 8 anos] e até tentou me atropelar", lembra.

Ela conseguiu uma medida protetiva em 2018, depois de prestar queixa em uma Delegacia da Mulher, mas a decisão foi quebrada no mesmo ano, com o agressor invadindo a portaria de seu prédio, ocasião em que fez ameaças, proferiu xingamentos e cuspiu no rosto de Mayara. Ela filmou tudo, voltou a denunciá-lo e conseguiu uma segunda medida protetiva, dessa vez mais ampla, proibindo não só que ele se aproximasse dela, mas que entrasse em contato de qualquer forma, inclusive por mensagens por e-mail e nas redes sociais ou ligações telefônicas. "Mesmo assim, ele me ameaçava de morte todos os dias por e-mail", conta.

A situação escalou até que ela foi espancada. "Ele e a esposa me agrediram no meio da rua, na frente dos meus filhos. A minha medida protetiva estava valendo, as pessoas filmaram, o caso se tornou público e, mesmo assim, nada aconteceu. Ele continua solto e eu, sob ameaça".

"O próprio agressor me disse que não é um pedaço de papel que iria me proteger — e ele tinha razão. Na prática, fiquei totalmente desprotegida, cada vez mais vulnerável."

"Crio sozinha meus dois filhos, tive que mudar de casa, mudar eles de escola. Tenho que fazer minha própria proteção. Além de a medida protetiva não ter eficácia, a condução desses processos demora demais e, nesse meio tempo, pode ter acontecido de tudo comigo."

Como funcionam as medidas protetivas?

Para que uma medida protetiva seja emitida, a vítima deve solicitar o documento em uma delegacia, na hora de prestar queixa. O delegado ou autoridade policial competente tem 24 horas para enviar o caso ao juiz mais próximo, que tem outras 48 horas para responder com a decisão —em no máximo 48 horas, portanto, essa mulher deve ter uma medida protetiva e seu agressor será notificado.

Em cidades menores, que não são sede de comarca, a medida protetiva pode ser emitida pela própria autoridade policial, e a vítima sai da delegacia com a medida em mãos; em 48 horas, um juiz deve ratificar a decisão.

A promotora Fabiana Dal'Mas alerta que não é necessário registrar um boletim de ocorrência para solicitar uma medida protetiva: a vítima pode ir à delegacia apenas para pedir o afastamento do agressor. "Isso é importante porque protege muitas mulheres que querem a proteção da lei, mas não pensam em abrir uma ação penal", explica.

Nos últimos anos, o número de decisões judiciais nesse sentido bateu recorde no Brasil —e, para Dal'Mas, isso se deve a pelo menos três fatores: o fato de a mídia falar cada vez mais sobre violência doméstica; o aumento de casos de violência doméstica no Brasil, especialmente após a pandemia de covid-19, nos últimos dois anos; e por fim, a possibilidade de registrar um boletim de ocorrência on-line, que também permite que a vítima faça o pedido de proteção pela internet.

Qual o prazo de validade da medida protetiva?

Não há definição na Lei Maria da Penha a respeito da duração de uma medida protetiva — alguns juízes entendem que ela deve durar enquanto durar o processo, outros estabelecem uma duração de alguns meses; uma minoria não tem data de validade definida e são permanentes.

"É um erro muito comum fixar prazos para as medidas protetivas, uma vez que a lei não estabelece prazos. Outro erro comum consiste em condicionar as medidas protetivas ao registro de boletim de ocorrência ou à existência de testemunhas. As medidas de urgência não dependem da denúncia formal e podem ser deferidas mesmo que não existam testemunhas", explica a professora Valeria Scarance.

Outras medidas protetivas

Quando falamos em medidas protetivas, as primeiras determinações que vem à mente são o afastamento do lar e a proibição de se aproximar da vítima. Mas essas são apenas duas das 12 medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha, e que podem ser emitidas por um juiz, a depender da gravidade do caso.

Também são medidas protetivas as seguintes determinações:

  • suspensão da posse ou restrição do porte de armas do agressor
  • restrição ou suspensão de visitas aos filhos do casal -- decisão que deve ser tomada sempre com a participação da equipe de atendimento multidisciplinar, isto é, assistentes sociais e conselheiros tutelares, por exemplo;
  • acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual ou em grupos de apoio.
  • encaminhamento da vítima e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
  • a matrícula dos dependentes da vítima em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.