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'Tatuagem cobriu marca de passado de abusos e tentativa de feminicídio'

Liliana Oliveira (à esquerda) ao lado do tatuador que fez o desenho em seu braço - Arquivo pessoal
Liliana Oliveira (à esquerda) ao lado do tatuador que fez o desenho em seu braço Imagem: Arquivo pessoal

Rute Pina

De Universa, em São Paulo

15/04/2022 04h00

No braço esquerdo da copeira hospitalar Liliana Oliveira, 51, a imagem de um leão e duas borboletas significa uma nova vida. "O leão impõe respeito onde chega. As borboletas representam liberdade."

A tatuagem foi feita há pouco mais de um mês, em março, e simbolizou o fim da lembrança de um casamento de 26 anos marcado por abuso psicológico, uma tentativa de feminicídio —o ex-marido a golpeu com três facadas enquanto ela dormia— e, por consequência, depressão. "Ele era uma pessoa muito ciumenta, tive vários problemas por isso. A tatuagem cobre uma cicatriz de tentativa de suicídio, marca que carrego comigo há dez anos."

tatuagem Liliana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Desenhos representam batalha que enfrentei", diz Liliana
Imagem: Arquivo pessoal

Liliana conta que, durante o casamento, ela se fechou. "Eu não trabalhava porque ele dizia que a prioridade era criar meus filhos em casa. Tinha muito ciúme, brigava por qualquer coisa, falava de maneira violenta. Fui deixando a vida de lado."

"Vivia praticamente presa. Chegou uma hora que eu tinha medo de sair na rua, olhar para o lado e ser pega por ela, que brigaria comigo."

"Ele tentou me matar enquanto eu dormia"

Em julho de 2019, um sábado, os abusos psicológicos se transformaram em violência física: o ex a esfaqueou e incendiou a casa em seguida. O filho de Liliana, com 19 anos na época, salvou a mãe, arrombando a porta do quarto em que ela estava. O incêndio também atingiu seis unidades residenciais do edifício em que viviam Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. O prédio, na data, teve que ser evacuado pela Defesa Civil.

"Ele tinha histórico de ciúme e abuso, mas nunca tinha me agredido fisicamente. Naquele dia, saiu para trabalhar pela manhã, e eu estava dormindo. Voltou logo depois, entrou no quarto e me deu três golpes com uma faca. Depois disso, colocou fogo no apartamento."

"Aquele dia é muito confuso para mim até hoje, não consigo entender. Ele disse para a polícia que eu tinha vários amantes, vários homens, acho que foi um surto do sentimento abusivo."

Após o episódio, Liliana conseguiu uma medida protetiva e saiu do apartamento onde morava. "Só depois de um mês a ficha sobre o que tinha acontecido começou a cair e eu me dei conta de que fui vítima de violência doméstica", conta.

"Quis sair da minha casa porque, morando no mesmo lugar, parecia que eu ainda estava presa àquela história. Precisei conhecer outras pessoas e conquistar a independência financeira e liberdade que eu não tinha."

O primeiro passo foi tratar da saúde mental. Liliana começou a fazer caminhadas e arrumou seu primeiro emprego, quase aos 50 anos, como copeira em um hospital. Comprou roupas novas e decidiu melhorar sua autoestima.

"Agora olho para meu corpo e sei que eu que mando"

Mas a cicatriz no braço ainda a fazia se lembrar do período de abusos e violências. "Era uma grande vontade fazê-la, só que eu não tinha dinheiro", lembra.

Ao assistir a uma reportagem na TV, Liliana conheceu o projeto social "We Are Diamonds", fundado em 2016 e coordenado pela tatuadora Karlla Mendes. Ela oferece tatuagens a mulheres que desejam cobrir cicatrizes decorrentes de violência doméstica e outros traumas. O projeto já tatuou mais de 150 mulheres. Liliana decidiu se inscrever e foi selecionada para participar da ação neste ano, na semana do Dia Internacional da Mulher.

"Hoje posso colocar uma blusa curta sem tentar esconder minhas cicatrizes. A tatuagem representa a batalha que eu enfrentei para sair desse episódio, com a ajuda dos meus dois filhos", diz.

"Quando a vejo no espelho, me dá mais força. Agora posso olhar para o meu corpo e dizer que eu mando na minha vida."

O marido de Liliana foi preso em flagrante em 2019 e encaminhado a uma Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo. Ele foi condenado por tentativa de homicídio e, atualmente, cumpre pena de prisão. "Espero nunca mais ter contato com ele e evito pessoas que possam ter informações sobre ele", diz ela.

"Foi difícil para mim superar o que vivi, mas sei que, quanto mais cedo as mulheres vítimas falarem, mais isso pode fazer a diferença para ajudarmos umas às outras."

Liliana diz ter enfrentado dificuldades em se relacionar, mas conseguiu superar traumas e está feliz com um novo companheiro. "Fiquei com muita raiva de homens, tive que reaprender a estar em um relacionamento. Com meu atual companheiro, vejo que não preciso estar acorrentada para amar alguém."

Como denunciar violência doméstica

Se você está sofrendo violência doméstica ou conhece alguém que esteja passando por isso, pode ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de como proceder e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Para denunciar, procure uma delegacia, de preferência especializada em atendimento a mulheres, ou então faça o boletim de ocorrência eletrônico, pela internet.

Outra sugestão, caso tenha receio em procurar as autoridades policiais, é ir até um Cras (Centro de Referência de Assistência Social) ou Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade. Em alguns deles, há núcleos específicos para identificar que tipo de ajuda a mulher agredida pelo marido precisa, se é psicológica ou financeira, por exemplo, e dar o encaminhamento necessário.

Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos.

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Caso você esteja sentindo angústia, ansiedade e solidão e perceba ideações sucididas, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive em feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil. O Mapa Saúde Mental também disponibiliza uma lista de atendimentos psicológico e psiquiátrico, gratuitos, em todo o Brasil, online ou presencial.