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"Sofrer estupro é como ser estapeada pelo patriarcado", diz jornalista

Adriana Negreiros, autora de "A Vida Nunca Mais Será a Mesma", livro em que relata estupro sofrido em 2003 - Daryan Dornelles/Divulgação
Adriana Negreiros, autora de "A Vida Nunca Mais Será a Mesma", livro em que relata estupro sofrido em 2003 Imagem: Daryan Dornelles/Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

10/10/2021 04h00

Quinze anos se passaram até que a jornalista Adriana Negreiros conseguisse falar sobre o estupro que sofreu em 2003, durante um sequestro-relâmpago. "Na época, fiz o boletim de ocorrência na delegacia de polícia e contei para algumas pessoas, mas depois evitei falar sobre o assunto, muito embora pensasse sobre isso o tempo inteiro", conta.

A violência ocorreu quando ela tinha 28 anos e se dirigia a seu carro no estacionamento do Shopping Eldorado, em São Paulo. Abriu a porta, sentou no banco do motorista e sentiu uma mão tapando sua boca. A voz masculina vinda do banco de trás lhe disse: "Se não quiser morrer com um tiro na cabeça, faça tudo o que eu mandar. Aqui tem seis balas". Foi levada para um matagal e violentada.

Quando percebeu que a dor, a vergonha e o incômodo não lhe impediam mais de tocar no assunto, Adriana começou a conceber a ideia do livro "A Vida Nunca Mais Será a Mesma", que será lançado na segunda-feira (18) pela editora Objetiva. Nele, a autora intercala a narrativa do próprio relato com tragédias de outras mulheres abusadas por pai, avô, marido e faz um apanhado da legislação sobre violência sexual no país. A jornalista entrelaça os temas na intenção de mostrar que não se tratam de casos isolados.

Negreiros aponta para o machismo entranhado na cultura brasileira, que faz a vítima de violência sexual sentir o peso de uma estrutura social que insiste em dizer às mulheres quem elas devem ser e como precisam se comportar. "Quando aconteceu comigo é como se uma grande estrutura dissesse: 'Está vendo? Você deveria ter ficado em casa'. É como se fôssemos estapeadas pelo patriarcado. Virei uma pessoa mais retraída, introvertida, com medo."

UNIVERSA - Por 15 anos, você evitou falar sobre o estupro que sofreu. Agora, lança um livro em que narra o episódio. O que mudou?

De fato, por muito tempo, eu não falava com ninguém. Minha irmã mais velha eventualmente tentava tocar no assunto, eu não queria, embora pensasse sobre isso o tempo inteiro. Um fator que me fez considerar escrever foi a morte do meu pai em 2013. Achava que ia ser muito doloroso para ele saber disso. Em algum momento pensei que uma boa maneira de lidar com o que passei seria escrever. Hoje também existe um espírito de acolhimento entre mulheres que não havia em 2003.

"A Vida Nunca Mais Será a Mesma", de Adriana Negreiros - Divulgação - Divulgação
Livro será lançado no dia 18 de outubro
Imagem: Divulgação

Como escrever te ajudou a lidar com o que viveu?

Ajudou a organizar a experiência, relembrar e colocar uma ordem. Era tudo muito fragmentado na minha cabeça. Essas memórias ficaram cristalizadas e durante muito tempo voltavam à mente, eu queria entender o que eu fiz de errado para ter esse desfecho. Fiquei muito tempo me achando a pessoa mais imbecil do mundo porque liguei o alarme do carro, o criminoso viu e entrou. Isso estava dentro de mim me machucando. Escrever é um exercício interessante para se compreender e se perdoar. Hoje, sinto um alívio. Há também uma satisfação profissional por ter produzido algo a partir da dor.

Sua história é intercalada com histórias de violências sexuais sofridas por outras mulheres. O que mais te tocou ao ouvir esses relatos?

O que me deixou mais angustiada foi ouvir as histórias delas, que eram as mais absurdas. Muitas estavam contando pela primeira vez, eram casos terríveis. Elas vivem como sobreviventes e não sabem o que fazer com essa dor. Outra coisa que me dei conta é que existem muito mais vítimas de estupro ao nosso redor do que podemos imaginar, pessoas que passaram por graus de violência inimagináveis.

Qual o ponto em comum entre elas e você?

Quando digo que a vida nunca mais será a mesma, isso pode acontecer por vários motivos. Mas, quando se sofre estupro, o ambiente de segurança desaparece. Todas as vítimas ficaram muito marcadas pelo medo. Outro aspecto em comum foi bem definido por uma das entrevistadas. Ela se perguntava: 'Será que esse cara sabia que estava fudendo minha vida para sempre?'. A gente se questiona: 'Por que diabos esse sujeito fez isso?'.

Por que o estupro fragiliza tanto uma mulher?

Quando aconteceu comigo, eu tinha 28 anos. Tinha me mudado de Fortaleza para São Paulo para trabalhar na revista Veja, imaginava que iria ocupar espaços de poder como mulher. Me perguntavam se eu tinha medo por vir sozinha para cá, coisa que nunca diriam a um homem. Aí, quando acontece o estupro, é como se dissessem: 'Está vendo? Você não deveria ter feito isso, deveria ter ficado em casa'. Quase como se fosse uma constatação de que todo mundo tinha razão. Nesse sentido, é algo violento. É como se uma grande estrutura dissesse o que temos que fazer, para que servimos. Virei uma pessoa mais retraída, introvertida, passei a ter muito mais medo. Eu me considerava uma mulher destemida, corajosa. Mas a coragem, que era minha espinha dorsal, foi retirada de mim. Eu precisava me reencontrar de alguma maneira.

Você fez um apanhado histórico da legislação brasileira que trata de violência sexual. Alguma lei chamou a sua atenção em especial?

Eu não imaginava que, até 2005, um estuprador que se casasse com a vítima tinha a pena anulada. Isso é uma aberração tremenda, me chocou mesmo. Assim como as opiniões do Nelson Hungria [delegado que participou da elaboração do Código Penal de 1940 e entrou para a história como 'o príncipe dos penalistas brasileiros'], o que ele disse sobre a possibilidade de a mulher resistir a um estupro [Hungria dizia que, por meio de determinados movimentos, a mulher conseguiria impedir uma penetração].

Na época em que sofri o estupro, em 2003, a conjunção carnal pela vagina era estupro, mas sexo anal era atentado violento ao pudor, considerado um crime menos grave porque, se a mulher permanecesse virgem, era menos pior.

Hoje a lei é muito mais moderna nesse sentido pois considera crime o 'ato libidinoso'. Me parece que dá conta. O grande problema é a forma como a lei é aplicada e o fato de, quase sempre, quando a mulher que vai denunciar um estupro, se parte do principio de que ela está mentindo.

Na quinta-feira (7), o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve, em segunda instância, a absolvição do réu no caso Mariana Ferrer, André de Camargo Aranha. A defesa diz que ele não tinha como saber que ela estava vulnerável. Vê risco em uma tese como essa?

Essa tese beira ao ridículo. E há o risco de se usar como argumento, daqui para a frente, coisas do tipo: 'Ah, eu não tinha como saber que ela tinha 12 anos'. Que espécie de homem não consegue perceber que uma mulher está bêbada? No geral, infantilizam o homem, ele vira o garoto distraído: 'Coitado, não tinha noção'. Já a infantilização da mulher é colocá-la como intelectualmente inferior.

Algumas pessoas consideram que não há estupro, se não há resistência por parte da mulher. O que você pensa sobre isso?

É equivocado achar que a mulher vai lutar e sair cheia de marcas. É um senso comum que me parece ter sido criado pelo cinema, a imagem da mulher se debatendo contra o cara. Na cabeça do próprio estuprador, se ela fica paralisada é porque não está achando tão ruim. Mas a verdade é que é muito mais arriscado reagir, se debater, do que congelar. No meu caso, o homem dizia que, se eu reagisse, levaria seis balas. Então comecei a fazer tudo para ter o melhor desfecho possível para a situação, que era continuar viva.

Fui negociando comigo mesma: vou ser estuprada, mas vou sobreviver; posso engravidar, mas poderei fazer um aborto; posso pegar uma doença, mas consigo me tratar depois.

Uma das moças que entrevistei foi estuprada em casa e me disse que elogiava o cara, o chamava de garanhão. Eu a entendi perfeitamente. Ela estava fazendo aquilo para que ele não a matasse.

O livro cita episódios de agressões contra a mulher na TV brasileira. Um deles do programa "Pânico na TV", em que uma mulher não cumpre uma determinada tarefa e precisa beijar um homem contra sua vontade. Qual a relação entre uma cena como essa e um caso de estupro relatado nas páginas seguintes?

Quando você obriga uma mulher a beijar o homem, e isso é tido como aceitável, consolida a ideia de que ela é um objeto e serve para satisfazer o prazer e o desejo dele. Quando o homem se convence de que mulher serve para atendê-lo e para satisfazer as suas pulsões, talvez não ache grande coisa, um despropósito, violentar uma mulher, estuprá-la dormindo, bêbada. Reforça o imaginário de que a prioridade é o desejo masculino.

Não vejo distância entre uma mulher numa situação como essa, tendo seu corpo invadido por um homem sem que esse seja o desejo dela, a serviço de um espetáculo, do caso em que ela é violentada. Quando a gente ri dessa primeira situação, vê como piada, está naturalizando o estupro.


O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é mostrado no livro como parte da cultura machista do país. Ele é criatura ou criador dessa cultura?

As duas coisas. Criatura porque a cultura do estupro é anterior a ele, mas criador porque reforça o discurso misógino de que mulheres estão aí para serem estupradas se não se comportarem direito [em 2003, o então deputado Bolsonaro disse para a também parlamentar Maria do Rosário (PT-RS): 'Jamais ia estuprar você, porque você não merece']. Ele reforça essa cultura com suas frases e com práticas misóginas, piadas de mau gosto, culto falocêntrico às armas. Qual a raiz do ódio às mulheres? É algo que tem que ser compreendido. Recentemente, ele vetou o projeto de lei para oferecer absorventes a mulheres de baixa renda. É uma completa falta de compreensão, uma falta de humanidade. A objetificação vem daí: colocar uma mulher em uma categoria à parte, desumanizada. Não há preocupação com o fato de que meninas não podem ir para a escola por não terem absorvente. Na cabeça de gente misógina, a humanidade está centrada no homem.