CSI: crimes sexuais

Conheça o trabalho de análise de DNA para desvendar estupros feito pela polícia científica de São Paulo

Camila Brandalise De Universa

Um pedaço milimétrico do tecido da calcinha de uma vítima vai para o fundo de um tubo de ensaio pequeno, é misturado a reagentes químicos e passa por máquinas de análise de material genético que lembram um forno industrial. Daquela amostra minúscula de pano saem, no final do processo, sequências numéricas que poderão dizer quem é o autor de um estupro que está sendo investigado.

Esse é um trabalho que se repete, no mínimo, de 50 a 100 vezes por mês no laboratório do Núcleo de Biologia e Bioquímica do Instituto de Criminalística de São Paulo, na capital paulista, com amostras de material genético que vão de resíduos em peças de roupa íntima à pele encontrada embaixo das unhas das vítimas.

A média se refere à quantidade de novos casos de crimes sexuais no período —estupros são cerca de 30% de todas as investigações que chegam ao laboratório, 20% são identificação de cadáveres e 50% crimes em geral, a maioria homicídios e crimes contra o patrimônio. Além disso, desde 2013, os peritos, em sua maioria formados em farmácia e biologia, desenvolvem um trabalho de retomada dos chamados "cold cases", as investigações arquivadas a partir de 2006, que não tiveram solução.

O estado de São Paulo registrou, em 2019, uma média de um estupro a cada 40 minutos. Foram 12.374, o maior número em sete anos. A proporção de prisões é cerca de sete vezes menor que a quantidade de ocorrências: também em 2019, 1.851 pessoas foram presas pelo crime, 6% a mais do que em 2019, segundo dados oficiais.

Em maio deste ano, o núcleo, ligado à Secretaria de Segurança Pública, foi finalista de um prêmio internacional por encontrar o autor de sete estupros cometidos entre 2012 e 2016 na capital paulista, que já estava preso por ter estuprado uma mulher, e provar que o homem que na época foi preso por esses crimes, incriminado apenas por reconhecimento facial, é inocente.

"Mas DNA não é bola de cristal", diz Ana Claudia Pacheco, farmacêutica de formação e diretora do núcleo. "A partir das informações de material genético que colhemos começa um minucioso trabalho comparativo para, então, dizer se determinado indivíduo foi o autor de um crime."

É sobre esse trabalho e seus surpreendentes resultados que você lerá abaixo.

10 mil DNAs, 56 casos resolvidos e um inocente a caminho da liberdade

Em 2019, uma força-tarefa para aumentar o banco genético de condenados por crimes sexuais cumprindo pena, sob ordem e investimento do Ministério da Justiça, fez saltar de menos de mil para 10 mil os DNAs cadastrados no estado. Escolheu-se focar em estupros por ser um tipo de crime em que o material genético é uma prova cabal e por ser comumente praticado contra várias vítimas, daí a importância de ter um arquivo desses DNAs. "Pelo menos 30% dos estupradores cometem uma violação contra mais de uma mulher", explica Ana.

Em uma das combinações entre os 10 mil DNAs registrados e os materiais genéticos colhidos em locais de crime ou no corpo de vítimas —cada uma dessas combinações é chamada de "match"—, as peritas descobriram que João Gleyson Pereira de Jesus Silva, que já estava preso por um estupro, era autor de outros sete, cometidos entre 2012 e 2016, embaixo de duas pontes no bairro do Tatuapé, na zona leste da capital paulista. Mas, por três desses sete crimes, outro homem, A. B. S., é que havia sido preso.

"Os dois são muito parecidos. Na hora do reconhecimento facial, duas vítimas confirmaram que era o A. Mas foi feito exame de DNA e não tinha compatibilidade. Mesmo assim ele foi preso em 2016", explica Juliana Mancilha Dias, assistente da diretoria do Núcleo de Biologia e Bioquímica. Desde então, a família de A. trava uma batalha para provar sua inocência.

Silva estava prestes a conseguir liberdade condicional, mas foi mantido preso e agora responde pelos outros crimes. Enquanto isso, A. aguarda uma nova decisão para ser solto.

O caso foi um dos finalistas do DNA Hit of the Year, premiação internacional promovida por uma associação americana, referência na área de biotecnologia. Da coleta de 10 mil DNAs feita de em 2019, outros 55 crimes foram desvendados. "O que não é pouco. Para nós, cada caso desvendado é uma vitória", diz Ana. Além do perfil genético de condenados, o banco também conta com 6.000 amostras de material colhidas de vítimas de estupros ou de vestígios dos locais dos crimes.

Suspeito de estupro não saiu da prisão no dia do crime. Então quem foi?

Em outro "match" que chamou a atenção da equipe, o DNA de um homem já preso por crime de estupro combinava com o que foi colhido em uma vítima, em uma investigação aberta havia dois anos. Porém, no dia em que teria cometido o crime, ele estava dentro do presídio. "Entrei em contato com a Secretaria de Administração Penitenciária para saber se ele teve direito a alguma saidinha, dessas que acontecem em Dia das Mães e Natal, e me disseram que não", conta Ana, que decidiu ir atrás de outras pistas.

No boletim de ocorrência do crime que resultou na condenação que esse homem cumpria, Ana encontrou uma informação crucial: ele tinha um irmão gêmeo. "No boletim de ocorrência, escreveram que a vítima desse primeiro caso conseguiu diferenciar um irmão de outro porque o que a estuprou não usava aparelho." Com a descoberta, conseguiram chegar ao irmão gêmeo do homem que já estava preso e, agora, os dois irmãos cumprem pena por estupro.

O caminho do DNA

  • 1. Coleta de vestígios

    Peças de roupa ou amostras de sangue, pele ou sêmen colhidos da vítima ou do local do crime são encaminhados para a análise do Instituto pelo IML

  • 2. Começa análise de DNA

    Um minucioso processo laboratorial identifica, primeiro, a quantidade de material genético presente na amostra

  • 3. Decodificação

    No segundo passo, o DNA é extraído e decodificado a partir da emissão de fluorescência

  • 4. Análise e laudo

    Então, o DNA colhido pode ser cruzado com o DNA de um possível suspeito. É feito um laudo pericial, anexado à investigação

  • 5. Banco de perfis genéticos

    O código é lançado em um software para armazenamento de informações de material genético. O programa não salva nomes, apenas números

  • 6. Cruzamento de dados

    Quando o software vê que o DNA lançado é o mesmo de algum outro arquivo já existente, acusa o "match"

  • 7. Deu "match"

    O "match" significa que o DNA inserido bate com o de uma pessoa já condenada por outro crime de estupro

  • 8. Acesso à investigação

    O perito acessa a investigação do crime anterior para identificar o dono do material genético em questão

"Mulher de estuprador me agradeceu em tribunal"

Com mais de 15 anos de experiência na área de perícia criminal, tanto Ana quanto Juliana já tiveram que participar de tribunais do júri para detalhar seu trabalho e o resultado de um laudo. Em uma das vezes em que participou de um julgamento, Ana dormiu no tribunal, um protocolo a ser seguido por todos os participantes do júri, que duraria alguns dias. O caso era o de um réu que respondia por estupro e assassinato da cunhada adolescente.

"Eu lembro bem dessa história porque teve uma reviravolta. A polícia tinha indícios de que o cunhado da garota era suspeito. Na casa dele, sua mulher, que acreditava na inocência do marido, entregou a roupa que ele estava usando no dia do crime para a polícia. E disse: 'Levem, vão ver que ele é inocente'. Mas, na parte de dentro da calça jeans, tinha uma amostra de sangue, que, por análise, conseguimos provar ser o mesmo perfil genético encontrado embaixo das unhas da vítima." O rapaz foi condenado.

No dia em que dormiu no tribunal, era proibido que os envolvidos no julgamento conversassem sobre o crime. "Mas a mulher do réu, irmã da vítima, veio falar comigo. Perguntou: 'Você é a perita do caso? Eu só deixei de acreditar naquele cafajeste depois que saiu seu laudo, porque pensava que ele era inocente", conta Ana. "E foi legal para mim ouvir aquilo, porque ele estava enganando a mulher. A prova científica não deixa dúvida."

Fotos dos filhos "para trazer humanidade"

Na sala onde está o computador com o software para procurar os "matches" dos perfis genéticos, um quadro com fotos de crianças sorrindo em uma das paredes fisga o olhar de quem entra. "São nossos filhos, para trazer um pouco de humanidade", diz Juliana, que, em sua mesa, colou também desenhos do filho de oito anos.

Além de ter duas diretoras mulheres, o Núcleo de Biologia e Bioquímica tem maioria de peritas —elas são 18 das 22 pessoas que trabalham no local. A proporção repete as salas de universidades: para trabalhar nessa área, os profissionais precisam ter formação em farmácia, biomedicina e biologia, áreas ainda majoritariamente femininas.

"Quem escuta a gente conversar sobre nosso trabalho pensa que somos insensíveis. Apesar de serem crimes bárbaros, lidamos com os casos como objetos de trabalho. Se for se envolver psicologicamente com as histórias, a gente não vive", diz Ana, também mãe de um menino.

Ana e Juliana entraram juntas para a Polícia Científica há 18 anos. Eram colegas da faculdade de farmácia bioquímica da USP (Universidade de São Paulo), prestaram o concurso e passaram. "Me tornei perita, mas não porque sempre sonhei com isso. Foi um acaso. Depois, me apaixonei pela área", conta Ana, enquanto Juliana balança a cabeça positivamente, em concordância com a amiga. Não é preciso um curso específico para se tornar peritas, mas seguir as exigências dos concursos de ter formação nas áreas relacionadas.

"Quando me formei, fui trabalhar em um laboratório de análises de clínicas e me especializei na área de DNA de paternidade. Depois que entrei aqui, que fui conhecendo o trabalho, me apaixonei. Oferecer um resultado muito palpável, conclusivo, é gratificante", diz.

Juliana diz dividir da mesma sensação de dever cumprido. "Me lembro da primeira vez que encontramos um 'match' nacional, que era um caso de crime contra o patrimônio. Foi bem no começo do banco de perfis genéticos, em 2014. Pensei: 'Nossa, está dando certo, estamos ajudando a escrever essa história que não existe no Brasil."

Assassinato que chocou o país foi solucionado após 11 anos

Em 2008, Rachel Genofre tinha nove anos quando foi estuprada e morta na rodoviária de Curitiba, em um caso que comoveu o país. Seu corpo foi encontrado dentro de uma mala. Até o ano passado, a polícia do Paraná não tinha conseguido encontrar o autor do crime, apesar da coleta de DNA de diversos suspeitos para comparação com o material encontrado nos lençóis e na mala onde o corpo de Rachel havia sido achado.

Foi quando a equipe do Instituto de Criminalística conseguiu mais um "match" importante. A partir de um cruzamento de dados dos presos em São Paulo com a base nacional, descobriu-se que o DNA relativo ao caso era o mesmo de um detento de um presídio em Sorocaba, no interior de São Paulo. Carlos Eduardo dos Santos, 52, cumpria pena de 22 anos de prisão por outros crimes. Após a descoberta, quando solicitado um novo depoimento, ele afirmou que só falaria diante de um juiz. Mas a polícia informou que o material genético já havia comprovado que ele teve contato com Rachel, e Santos confessou o crime. Agora, está preso preventivamente, para impedir que seja solto por progressão de pena.

"A equipe de Curitiba comemorou muito, choraram. Foi emocionante. Era um crime difícil de solucionar e que despertou uma comoção social muito grande", diz Juliana.

Banho da vítima atrapalha trabalho de investigação

"É difícil dizer que a mulher não deve tomar banho após sofrer um estupro. A vítima fica com nojo, o que é 100% compreensível e normal. Muitas delas se higienizam antes de fazer o boletim de ocorrência. Ela vai para casa, toma banho, se lava. Mas é uma perda muito grande de vestígio para nós", diz Ana. "O ideal, apesar de todo o constrangimento, é procurar uma delegacia imediatamente. A maioria dos estudos apontam que os vestígios de fluidos masculinos ficam por até 72 horas no canal vaginal. Passado esse tempo, quase não tem mais material do homem."

Ela ressalta, ainda, que, caso a vítima tenha forças para denunciar, deve ir a uma delegacia mesmo acreditando que as chances de capturar o estuprador sejam baixas. "É muito comum que um mesmo homem faça mais de uma vítima e que esses casos sejam registrados em diferentes delegacias", explica Ana. Em uma delas, diz, pode haver o reconhecimento da pessoa e, se houver material genético cadastrado e conversas entre delegados —o que é raro e deveria acontecer com mais frequência, segundo as peritas— os outros crimes têm mais chance de serem resolvidos.

"Me lembro de um homem que estuprou cinco mulheres, e o caso de quatro delas estava em aberto. Vimos aqui que os DNAs batiam e fomos atrás dos boletins de ocorrência. Em um deles, a vítima o conhecia, tinha inclusive dito seu nome no registro da ocorrência. E assim os outros quatro foram desvendados também", conta Ana. "E casos de seriais aparecem o tempo todo aqui para nós. Tem caso de 'match' quíntuplo, sêxtuplo. Já pegamos 12 vítimas do mesmo estuprador."

Juliana comenta que um dos casos que mais a marcou nesses 18 anos de profissão foi justamente envolvendo um criminoso em série. Ela estava no julgamento desse homem quando a investigadora do caso lhe apresentou à vítima que, chorando, a agradeceu por conseguir comprovar quem era o autor do crime. "Envolvia um homem que já estava preso por estupros em série em Guarulhos [Grande São Paulo], praticados em 2007. Em 2014, ele cometeu outros três crimes. Deve ter sido em uma saidinha, ou quando ele estava cumprindo regime semiaberto. Mas não conseguiram identificá-lo. Foi só em 2015, quando jogamos os vestígios encontrados na vítima no banco de dados, que chegamos ao nome dele", diz.

"Quando cheguei na audiência, conheci a vítima, que me agradeceu e chorou. São esses acontecimentos que fazem valer a pena trabalhar nessa área. Tudo é muito difícil aqui, os casos são pesados. A gente é mulher, é mãe, é filha. Se nos colocamos no lugar da vítima, vemos um lado de muito sofrimento, com o qual não sei se conseguiria lidar."

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