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Karen Jonz, pioneira no skate brasileiro: 'Eu tentava parecer um homem'

Karen Jonz chamou a atenção como comentarista de skate na SportTV - Divulgação/Pedrita
Karen Jonz chamou a atenção como comentarista de skate na SportTV Imagem: Divulgação/Pedrita

Luiza Souto

De Universa

27/07/2021 04h00

Quem acompanhou a primeira transmissão do Skate Street como esporte oficial nas Olimpíadas pelo SporTV viu o Brasil ganhar duas medalhas de prata históricas - com Kelvin Hoefler e Rayssa Leal - e também pode acompanhar a estreia da tetracampeã de skate Karen Jonz como comentarista.

Aos 37 anos, Karen se destacou com seus comentários engraçados e, também, feministas. Chamou a atenção ao responder o colega de transmissão Sergio Arenillas, que disse que "pouco se fala sobre a paternidade no esporte". "Porque provavelmente eles deixam o filho com a mãe", Jonz retrucou, e acabou virando Trending Topics do Twitter.

Seu sucesso como comentarista surpreendeu muita gente, mas ela tinha sido avisada: "Tenho uma amiga que falou que ia acontecer alguma coisa de Olimpíada, e eu falava: 'Para com isso. Eu não vou participar'. Aí essa semana ela falou: Tá vendo, eu falei!", disse Karen em entrevista Universa.

Primeira brasileira a conquistar o ouro brasileiro feminino nos X Games e também a trazer um título mundial para o país, ambos em 2008, Karen foi sua própria referência num esporte até aqui masculinizado. "Quando eu comecei a competir, nem banheiro feminino tinha nos campeonatos", lembra. Para ser aceita, Karen diz que se vestia como os outros meninos e até chegava a reproduzir comportamentos machistas.

Karen falou com Universa do hotel no Rio de Janeiro, enquanto se preparava para voltar para São Paulo, onde mora, após participar das transmissões das Olimpíadas no Rio. Casada com o músico Lucas Silveira, da banda Fresno, e mãe de Sky, de 5 anos - foi a primeira vez que trabalhou fora desde o começo da pandemia. "Até pouco tempo éramos só eu e o Lucas. Agora que meus pais vacinaram, conseguimos contar mais com a ajuda deles", contou Karen, que deve voltar para comentar as competições da modalidade Skate Park, dia 3 de agosto. Leia os principais trechos da entrevista a seguir:

UNIVERSA - Você começou no skate quando o esporte ainda era pouco valorizado, principalmente entre as mulheres. Como foi ver a evolução até chegar na Rayssa Leal levando a prata?
Karen Jonz:
Foi maravilhoso. Na hora, fiquei muito emocionada. passa um flashback do quão foi duro para mim lá atrás.

Quando participava de campeonato não tinha banheiro feminino, nem me deixavam participar de algumas competições porque era a única menina. Chorava muito e ficava inconformada, achava que era injustiça demais. E agora ver as meninas se divertindo, com sorriso no rosto, parece que as peças do quebra-cabeça vão se encaixando.

O skate é um esporte mais equilibrado entre homens e mulheres hoje em dia?
Está todo mundo muito empolgado, mas vamos com calma. Esse é o primeiro passo. Ainda vai demorar anos para gente subir a um patamar mais igualitário.

O que está acontecendo agora é o mínimo. Nos meus sonhos, a gente viveria num mundo onde a mulher existe da mesma maneira que o homem, e comemora a medalha e ponto. Não o fato de ser uma mulher ganhando uma medalha ou de estar ali.

Claro que tem que comemorar, porque é a realidade que a gente vive, mas é o mínimo. Estamos vendo as atletas olímpicas tendo destaque, mas quantas milhares tentam viver do skate, seguir uma carreira, e não têm oportunidade? Estamos vendo a superfície do lago. Espero que as meninas tenham mais oportunidades, patrocínios.

Karen Jonz é pioneira no skate brasileiro - Divulgação/Pedrita - Divulgação/Pedrita
Karen foi 1a brasileira a conquistar o ouro brasileiro feminino nos X Games e também a trazer um título mundial para o país, ambos em 2008
Imagem: Divulgação/Pedrita

Ao virar comentarista, você está entre um seleto grupo de mulheres que cobrem esportes. Estão surgindo mais oportunidades nesse setor também?
Acho que nós, mulheres, precisamos nos olhar e nos colocar nos espaços. Tive estrutura e cabeça para conseguir estar onde não era chamada, mas entendo que muitas pessoas não têm a menor condição. Por isso, quem pode tem que ir lá e fazer por todas, para que em algum momento isso seja automático.

Aceitei ser comentarista das Olimpíadas por causa do skate feminino, porque se fosse pelo masculino confesso que ia ficar perdida. E porque tenho o prazer de estar mais envolvida no esporte das mulheres. Os meninos são competentes na narração, mas sempre senti que faltou um pouco mais de aproximação e vivência, porque os homens não se interessam por skate feminino.

Você vai numa pista e às vezes os caras não sabem nem o nome das minas que andam com eles todo dia.

Como você lidava com os machismos nas pistas e competições?
Escutava muito machismo, mas reproduzia também -- e achava que estava arrasando. Para tentar me encaixar, eu usava frases machistas que o pessoal ao meu redor falava. E os caras falavam: 'Nossa, a Karen é diferente, anda igual aos caras'. Eu ouvia e considerava um elogio. Hoje as meninas não precisam disso.

Além disso, eu tentava parecer um homem. Não tinha referência estética que me fizesse ter vontade de me vestir como queria, e a referência que eu tinha eram os caras. Isso era confuso pra mim.

Havia mulheres a sua volta que te ajudavam a enxergar essas atitudes e não se abalar com elas?
Minha irmã, Pamela, na época, me apontava coisas que eu não conseguia enxergar. Lembro que teve um torneio em que ganhei o ouro, mas não saiu nenhuma entrevista ou reportagem comigo, só falaram com os homens que ganharam bronze ou ficaram em quarto lugar.

Mas eu queria tanto pertencer e estar nos lugares que não tinha consciência e, por isso, nem sofria. Às vezes ficava chateada, mas fechava os olhos para a maioria das situações injustas e machistas que aconteciam comigo. Tentava achar uma solução para contornar, sem enfrentar.

Quando você passou a ter mais consciência do que passou?
Tive muitas questões com meu feminino, principalmente porque o feminino é mostrado para gente como uma coisa estética, de ter que pintar unha, colocar roupa apertada.

Demorei anos para hoje ter a segurança de me perceber extremamente feminina. E que isso não tem nada a ver com roupa. A terapia me ajudou bastante e acabou me ensinando muitas questões, entre elas de que o feminino tem a ver com acolhimento, sensibilidade e cuidados consigo mesma.

Tive confusão com a questão do gênero, e por um tempo eu quis parecer um homem. Nem tinha nomenclatura para isso. Talvez hoje teria ido para um caminho de querer ser não-binário. Querer ser vista como gênero neutro, para mim, surgiu do fato de me incomodar de ser vista só como mulher.

Me incomodava quando saía de casa e falavam que eu parecia um moleque, quando por baixo do moleque tinha uma menina com tanto valor. Queria que me vissem por dentro, minha alma e meus valores. E isso não tem nada a ver com orientação sexual.

Como você escolheu o skate como esporte?
Comecei por vontade de me movimentar em cima do skate e só com o tempo fui descobrindo as meninas que andavam, mas não tinha grande referência. Gostaria de ter tido, porque é mais gostoso e mais fácil quando você se identifica. Mas fui minha própria referência.

Foi muito difícil, mas ao mesmo tempo engrandecedor. Claro que tinham outras meninas que andavam antes de mim, mas descobri muito depois.

Você é mãe de uma menina de 5 anos. Como educa a Sky para que ela não sofra as violências de gênero que sofreu e nem reproduza machismos?
Tenho acompanhado vários perfis do Instagram sobre educação e feminismo. E também que falam sobre prevenção de assédio na infância. Comecei a ver lives da psicóloga Leiliane Rocha sobre o tema, por exemplo. Ela dá várias dicas de como explicar para a criança que ninguém pode brincar com as partes dela, que se alguém fizer isso tem que gritar e sair correndo.

Numa das transmissões, o seu companheiro de bancada Sergio Arenillas narrava a performance de Shane O'neill, destacou que ele é pai e que pouco se fala sobre paternidade no esporte. Você respondeu que provavelmente eles deixam o filho com a mãe e vão andar. Tem visto um movimento maior de pais que buscam dividir as tarefas?
Tenho poucos amigos da mesma faixa etária que eu que se esforçam para dividir as tarefa da criação dos filhos com a parceira. A grande maioria não está nem aí mesmo, deixam filho com a mulher e pronto. Mas vejo e acho muito legal mais homens falando sobre desconstrução da masculinidade, sobre paternidade, como o "Paizinho, Vírgula". São figuras importantes, mas se na minha bolha vejo poucos pais se informando e fazendo essa divisão, imagine fora dela, onde o cara só reproduz um comportamento de muitos anos.

Como é na sua casa?
Os primeiros anos da Sky foram bem pesados para mim, mas o Lucas é cabeça aberta e procura realmente não só falar, mas fazer o que fala. No começo estava sobrecarregada e foram várias discussões e etapas, mas ele sempre me apoiou em tudo e conseguimos chegar numa boa administração.

Na pandemia, éramos só eu e Lucas. A gente fez tudo de dentro de casa e foi puxado. Agora que meus pais vacinaram, conseguimos contar mais com a ajuda deles. Essa ida para narrar os Jogos foi a primeira vez que saí de casa.