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'Você vai matar seu bebê': mães relatam violência obstétrica psicológica

Ester Xavier afirma que a violência que sofreu no parto fez do dia o pior da sua vida.  - arquivo pessoal
Ester Xavier afirma que a violência que sofreu no parto fez do dia o pior da sua vida. Imagem: arquivo pessoal

Sarah Alves

Colaboração para Universa

14/07/2021 04h00

A gestação e o nascimento de um filho são momentos importantes na vida de uma mulher, em que ela precisa de respeito, acolhimento e cuidados. Mas algumas mulheres vivenciam o contrário: humilhação, ameaças e gritos são marcas de violência obstétrica psicológica relatadas por mães ouvidas por Universa.

Assim como a violência física, a psicológica causa impacto emocional. Muitas vezes as duas vêm associadas, explica a psicóloga Janaína Aguiar, doutora em Ciências pela FMUSP. "Os abusos podem se expressar de diversas formas, mas pode-se entender como qualquer ação que resulte em danos emocionais por degradar, humilhar, controlar ou violar a autonomia da mulher", afirma a especialista. A seguir, conheça as histórias de Luise, Juliana e Ester, que passaram por situações traumáticas no dia do nascimento de seus filhos.

'Obstetra disse que não chamaria anestesista de madrugada só por minha causa'

Luise de Araújo, 27 anos, doula - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Luise só percebeu que foi vítima de violência obstétrica quando começou estudar para ser doula.
Imagem: arquivo pessoal

"Com 37 semanas e dois dias de gestação fui até o hospital após sentir um pouco de líquido escorrendo. Lá, fiquei em observação e uma médica constatou que eu estava com bolsa rota. Então, começou a induzir meu parto. As contrações não eram mais ritmadas, eu tive dores de minuto e minuto, mas sem dilatação.

Na madrugada, minha bolsa rompeu, mostrando que o diagnóstico da médica estava errado. A dor aumentava. Às 4h, pedi para fazer a cesárea e, então, a médica começou a debochar de mim. Foi assim até às 8h30. Fui com um plano de parto e ela dizia 'como assim você vai desistir?'. Me proibiu de comer e tomar água, enquanto ria com as colegas.

Com muita dor, eu seguia pedindo pela cesárea e as enfermeiras diziam que estavam agendando, mas piscavam entre elas. Em um momento, falei que sabia que elas estavam mentindo. A médica, furiosa, disse: 'onde já se viu? Estou aqui me esforçando por você. Como fala isso de mim?' e saiu batendo a porta.

Depois, ficamos só eu e o meu namorado no quarto e elas pararam de me dar assistência. Precisei esperar o próximo plantão, porque a obstetra disse que não chamaria a anestesista de madrugada só por minha causa.

Eu percebi que fui vítima de violência obstétrica quando procurei um curso de doula, minha atual profissão. Comecei a estudar e vi todos os abusos que sofri, afinal também tentaram induzir o meu parto sem necessidade.

Após ter o meu filho, eu chorava dia e noite, me sentia incapaz por desistir do parto normal. Fiquei com o sentimento de que se eu tivesse me esforçado mais teria conseguido. O meu processo de recuperação foi com o trabalho. Hoje sei que posso ajudar outras mulheres a ter uma experiência diferente da minha." Luise de Araújo, tem 27 anos, é doula e mãe do Augusto, de 10 meses. Mora em Santa Maria (RS)

"Eu gritava de dor e médica gritava comigo"

Juliana Andrea Madeira, 37 anos, psicóloga - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Depois de sua experiência traumática, Juliana, que é psicóloga, criou o Mãeterna, projeto de orientação e acolhimento gratuitos em todas as etapas da maternidade
Imagem: arquivo pessoal

"Cheguei ao hospital muito bem, porque tive uma gestação tranquila, só tinha que esperar o meu filho chegar. Estava evoluindo bem, mas depois comecei a receber doses de ocitocina e tive um excesso de dor por hiperestimulação uterina. Sem intervalo de contração, perdi os sentidos, chorava porque não aguentava mais e não conseguia fazer força.

A equipe não fazia nada para me ajudar. A médica pegou uma lixa de unha, que estava no bolso, e repetia 'ter filho é assim mesmo'. Eu pedia anestesia e ouvia 'aqui não tem anestesia. É com dor mesmo'.

Quando vinha a contração, ela me dizia que eu ia matar o meu filho, porque não sabia fazer força e ainda falava 'aposto que você é sedentária'. Essa frase ficou na cabeça, pensei que deveria ter me preparado melhor para o parto.

Eu gritava de dor, ela gritava comigo. Em um momento ela não ouviu mais o coração do meu filho e eu precisei fazer muita força, não sei de onde ela veio, mas o meu bebê finalmente nasceu.

Depois do parto, tive hemorragia. Minha mãe saiu do centro cirúrgico e, quando a médica controlou a situação, lembro que ela conversava com as outras pessoas sobre uma viagem que fez para a Disney. Isso enquanto eu perguntava incessantemente o que estava acontecendo, porque me sentia fraca.

Falei que tinha medo de morrer e a obstetra respondeu 'se morrer, enterra. A morte é muito natural para os médicos'.

Quando fui voltando a mim, comecei a me desculpar por exagerar. Mas, depois, vi uma moça que teve um trabalho de parto mais tranquilo no leito ao lado e entendi o que aconteceu comigo, fechei a porta do quarto, escrevi tudo o que eu passei e chorei muito.

Uma psicóloga veio me ver, porque foi avisada que eu estava com depressão pós-parto. Aí, estourei, eu estava assim porque tinha sido violentada!

Quando o meu filho tinha um ano, engravidei novamente, sem planejar. Entrei em pânico e repetia que não queria um filho de novo, por medo de passar pela mesma situação e tive um aborto espontâneo. Claro que não foi só por isso, mas acredito que o medo de voltar para o hospital teve um peso enorme.

Nunca busquei indenização, só queria que as coisas melhorassem, porque comecei a trabalhar em uma instituição que atende crianças com necessidades especiais e lá conheci uma mãe que tem um filho com uma síndrome por falta de oxigênio no parto. Foi com a mesma médica. Horrível.

Depois, conheci outras mães, reuni 10 mulheres que sofreram violência no mesmo hospital e hoje faço disso a minha causa. Criei o Mãeterna, um projeto de orientação e acolhimento gratuitos em todas as etapas da maternidade. Se eu consegui superar isso é porque posso ajudar outras mulheres." Juliana Andrea Madeira, de 37 anos, é psicóloga e mãe de Davi, de 2 anos. Mora em Vinhedo (SP)

"Não pude ter ninguém ao meu lado e estava machucada"

Ester Pereira Lamarão Xavier, 22 anos, modelo - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Ester Pereira Lamarão Xavier, 22 anos, modelo
Imagem: arquivo pessoal

"Eu engravidei aos 18 anos e, quando cheguei ao hospital em trabalho de parto, a médica foi muito agressiva logo nos exames. Comecei a sangrar com o toque, disse que doía e ela falou que as coisas eram assim mesmo.

Fiquei com muito medo. Outra médica me examinou e eu não queria que ela me tocasse, mas ela prometeu ser delicada. Porém, já perguntou se não queria fazer cesárea, mesmo eu não tendo pedido.

No final do dia, sem dilatação, a primeira médica disse que eu iria para a cesárea e eu acatei. Mas ela foi embora sem avisar e eu fiquei mais duas horas com dor.

Fui andar para ver se ajudava, e então dois médicos me chamaram para examinar. Em nenhum momento eles ficaram atentos a mim, conversavam sobre outras coisas. Um deles falou que eu não estava em trabalho de parto e simplesmente saiu do quarto, dizendo que eu não tinha dor. Minha mãe ficou em choque.

Uma enfermeira entrou no quarto e começou a falar alto 'essas meninas novas chegam aqui e acham que parto normal é rápido. Eu tive quatro filhos e nunca deixei cortarem a minha barriga, senti as dores, fiz os exercícios e quando fui para o hospital, desovei o meu filho na maca'.

Isso me marcou muito, porque eu não reclamava, não gritava, por medo de ser maltratada, mas mesmo assim aconteceu.

Foi após tudo isso que eu comecei a sentir que minha filha não mexia e ninguém me examinava. Depois de horas um médico chegou, foi atencioso e disse que íamos para a sala de cirurgia. Foi um parto de emergência e quando a minha mãe falou que ia entrar comigo, não deixaram. Não pude ter ninguém ao meu lado e eu já estava extremamente machucada.

Quando a minha filha nasceu, eu não tive contato com ela. Eles disseram que era prematura, que tinha se machucado. Minha filha nasceu em sofrimento. Uma pediatra me falou a verdade quando estávamos no quarto: foi tudo culpa do parto.

Hoje, me sinto muito forte por ter aguentado tudo, mas muitas vezes me sinto fraca também. Isso me afetou no início da maternidade.

A violência me gerou sequelas grandes, posso dizer que foi o pior dia da vida. Quando eu saí do hospital, não consegui voltar para tirar os meus pontos, tirei sozinha em casa por pavor que um médico tocasse em mim.

Tenho muita vontade de ter mais filhos, mas muito medo. Penso que pode ser da mesma forma ou até que eu posso não aguentar." Ester Pereira Lamarão Xavier, tem 22 anos, é modelo e mãe de Rebeca, de 3 anos. Mora em Paracatu (MG)

Gestantes têm dificuldade de reconhecer abusos psicológicos

Segundo a obstetra Nadiessa Almeida, professora da PUC-RS, a violência psicológica também pode se expressar em pré-natais inadequados e quando a maternidade se nega que pacientes conheçam o local antes do parto, por exemplo. "O momento é da mulher, ela que manda. Nós precisamos dar segurança, garantir que todos estão bem", afirma.

Muitas mulheres também podem ter dificuldade em reconhecer a violência, já que os abusos psicológicos também tendem a ser mais velados. Porém, não estão ilesas aos impactos emocionais, que, de acordo com a psicóloga Janaína Aguiar, podem resultar em quadros ansiosos, depressivos, que podem levar a depressão pós-parto.

Condutas podem configurar crime e gerar indenização

A advogada Vivianne Ferreira, professora de Direito da FGV - SP, alerta que toda mulher tem direito a ser informada sobre qualquer procedimento na hora do parto. Se o direito for violado, há implicações nas esferas penal e cível.

"Não há lei federal específica que tipifique a violência obstétrica, mas as condutas podem configurar crime comum, como o de lesão corporal ou omissão de socorro. É importante a realização de boletim de ocorrência para investigação. Na área cível, a medida é a responsabilização dos causadores dos danos materiais e morais, e a reparação destes por meio, especialmente, de ação de indenização", explica. A advogada recomenda tentar gravar as condutas com o celular ou escrever, quando possível, um relato de próprio punho.