Topo

"Espero que um dia meus filhos possam contar sem medo que a mãe tem HIV"

Thais Renovatto, autora do livro "5 Aanos Comigo". - Arquivo pessoal
Thais Renovatto, autora do livro "5 Aanos Comigo". Imagem: Arquivo pessoal

Thaís Renovatto, em depoimento a André Aram

Colaboração para Universa

21/06/2021 04h00

"Meu nome é Thais, trabalho na área de marketing de uma multinacional em São Paulo. Eu descobri que havia sido infectada com o HIV em 2014, quando meu namorado de pouco mais de um ano foi internado.

Antes dele morrer, a família me contou que ele tinha Aids. Ao ouvir, fiquei em choque tive certeza que eu tinha sido infectada e fiz o teste só para constatar o que já era óbvio. A mãe dele me disse que ela e a família só haviam ficado sabendo no hospital. Pode ser que ele soubesse que tinha HIV e não aceitou, pode ser que não soubesse.

Nós tínhamos um relacionamento normal, nunca havia passado pela minha cabeça pedir exames para ele. Paramos de usar preservativo porque estávamos há um ano juntos e eu tomava anticoncepcional. Eu também fui um pouco culpada, não sabia nada da vida dele e transamos sem camisinha.

Tudo aconteceu de uma vez: meu namorado em estágio terminal, meu diagnóstico positivo. Eu pensava que iria morrer como ele, fiquei desesperada, foi uma explosão de sentimentos. Pensava 'coitado dele', se ele não sabia antes, e ao mesmo tempo pensava 'desgraçado', se ele tivesse escondido de mim.

Sem saber a verdade, eu não conseguia me posicionar diante do meu sofrimento. Entendi que não iria conversar com ele nesse plano espiritual. Aí fui ao hospital e disse no ouvido dele: 'Meu exame deu positivo, não vamos conversar nessa vida, te perdoo, vai em paz, faz a sua passagem'. No dia seguinte, ele morreu.

A imagem que eu tinha de alguém com HIV era estigmatizada e não conhecia ninguém com o vírus. Sabia que não pegava no beijo, que não precisava separar toalha, sabia disso, mas como era tão distante de mim, eu nem pensava muito nisso.

Thais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Thaís escreveu um livro para contar sua história chamado '5 Anos Comigo' e no qual narra a decisão de ter filhos; como ela tem carga viral indetectável, o marido e as crianças não se infectaram
Imagem: Arquivo pessoal

Após a morte do meu ex entrei na fase de aceitação, busquei uma psicóloga e informações com médicos e fui ficando mais segura. Tive meu momento reclusa, de ter um tempo para digerir, e, após isso, contei para família e alguns amigos e iniciei o tratamento.

Mas no momento do diagnóstico pensei que fosse uma sentença de morte.

Quando me relacionava com alguém era algo superficial — se a coisa fosse ficando séria, eu fugia, achava que a pessoa não merecia estar comigo, que não precisava passar aquilo comigo, que era um problema meu.

Já sofri preconceito, de contar para alguém, e ela desaparecer. Uma vez no trabalho, havia uma fila para entrar no banheiro e quando saí, a menina que ia entrar em seguida, não entrou. Talvez ela tenha ficado com medo de sentar no vaso sanitário, não sei. Mas não fiquei triste, é mais falta de informação mesmo, dela saber que não há riscos. Eu já estava preparada para isso, mas diante do acolhimento que tive de tantas pessoas, esses episódios não fizeram tanta diferença.

"Achava que não iria mais viver nem me relacionar com alguém"

Eu nem pensava mais em me relacionar, eu achava que eu não ia mais viver, porque na minha mente eu olhava para o meu ex-namorado no hospital e pensava 'Vou morrer igual a ele, não tem pra onde eu fugir', então essa coisa de relacionamento nem passava pela minha cabeça.

Só fui saber tempos depois, já fazendo acompanhamento médico, que eu poderia me relacionar, ter filhos.

Até que conheci o meu marido, Rodrigo, na empresa em que fui trabalhar. Nós éramos da mesma área, ficamos amigos, ele começou a sair com a minha turma e, no ano seguinte, nós ficamos em um show.

Eu tive receio, achava que ele era muito bacana e que devia ficar com uma mulher saudável, não queria envolve-lo na minha história, achava que ele não ia topar ficar comigo. Tentava fugir dele, mas a gente se apaixonou.

Eu precisava contar para ele — o vírus estava indetectável [com essa carga viral baixa é rara a transmissão] mesmo assim. Estávamos havia um mês juntos, eu tinha que contar, ensaiei como iria fazer — é uma conversa muito difícil, estava triste porque estava gostando muito dele, ensaiava e adiava, mas eu precisava contar.

Comecei a chorar, abri meu coração e contei tudo e que entenderia se ele não quisesse ficar comigo, apesar de amá-lo, e deixei claro que jamais quis colocá-lo em risco ou enganá-lo. Ele me abraçou e disse 'Que tipo de homem eu seria se eu não tivesse com você quando mais precisasse de mim? Vou ficar do seu lado e vamos passar por essa juntos'.

No fundo, sei que as pessoas deveriam ser assim, deveriam ficar com a outra pelo que elas são e não pelo que ela tem, mas não é bem assim.

Nos casamos e tomamos a decisão de ter filhos. Engravidei de forma natural seguindo os protocolos de saúde, pois como não tenho o vírus detectável não teria como transmitir para ele — mas antes fomos ao médico para ele entender tudo. Hoje temos dois filhos — e tanto as crianças quanto o Rodrigo não são soropositivos.

Decidi escrever um livro para contar minha história chamado '5 Anos Comigo' (ed. Loope), que foi lançado em 2018.

Eu espero que num futuro próximo, a gente possa ter outro tipo de diálogo, que as pessoas estejam mais abertas a escutar e não apenas julgar. Que os meus filhos possam contar na escola sobre a doença da mãe deles e que as pessoas tenham uma reação normal, como se ouvissem 'Ah ok, minha mãe tem diabetes (...), a minha tem pressão alta'. E que eles possam dizer 'A minha mãe tem HIV'."

* Thaís Renovatto, 38, é publicitária e vive em São Paulo com o marido e os dois filhos; e é autora do livro "5 Anos Comigo" (ed. Loope)