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"Nasci ligada à igreja e descobri que fé e feminismo podem caminhar juntos"

Raquel Daniel  - Arquivo pessoal
Raquel Daniel Imagem: Arquivo pessoal

Raquel Daniel em depoimento a Rayne Oliveira

Colaboração para Universa

05/06/2021 04h00

"Tenho 26 anos, moro em São Paulo e sou formada em cinema. Desde pequena minha relação com a igreja sempre foi muito forte, meu pai era diácono e minha mãe se converteu no início do relacionamento, em seguida se tornou líder do grupo de jovens e inclusive estudou teologia. Meus pais sempre ocuparam esses lugares de tomada de decisões dentro da igreja, então, além de eu ter a escola como espaço de socialização, eu tinha também o religioso.

A comunidade na qual eu estava inserida não tinha denominação, e possuía pensamentos teológicos progressistas e era cheia de atividades culturais tanto para jovens quanto para as crianças. Com sete anos eu comecei a frequentar um acampamento religioso, sem denominação e com muitas pessoas de outras igrejas. Tinha dificuldade de conversar sobre sexualidade e desejo dentro do ambiente religioso, aos 16 anos, me envolvi com um rapaz do acampamento, 12 anos mais velho e com ele passei três anos da minha vida, vivenciando um relacionamento totalmente abusivo, que se tornou prejudicial para o meu amadurecimento e adolescência.

Após o rompimento, comecei a ter acesso ao feminismo e pude ter ciência de como as mulheres eram violentadas, não somente fisicamente, mas psicologicamente ou somente pelo fato de serem mulheres

Depois desse relacionamento, eu passei por mais dois assédios nesse mesmo ambiente. As experiências só foram intensificando meu acesso a teologia feminista e até mesmo negra, teologias que são marginalizadas, mas que propõe uma leitura bíblica menos literal e mais contextual, uma leitura que passa sentido para o nosso tempo, que não exclui mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+.

Uma leitura bíblica que está interessada em entender Jesus dentro desse contexto histórico social e em entender a narrativa de um povo que foi liberto da escravidão, que tem muito para nos ensinar, não como um livro de regras

É importante reforçar que em todas as igrejas que estão se organizando institucionalmente e almejam crescimento, há um projeto de poder, que geralmente é benéfico para o pastor, branco, que deseja ter o poder e controle sobre os membros. Então essa ideia fundamentalista de que existe somente um estilo de vida, uma verdade e um caminho, existe até mesmo nos espaços religiosos liberais.

Quando você descobre outras formas de viver, de acessar ao sagrado e espiritualidade, você se torna um alvo de quem está no comando desse projeto de poder, fazendo com que seja excluída dessa comunidade, isso aconteceu comigo, comecei a confrontar e esse projeto começou a investir contra a minha pessoa. A galera que estava "preocupada" com os meus posicionamentos, que eram radicais demais, começou a querer neutralizar aquilo que eu estava sentindo: "Não é bem assim", ou: "Você está exagerando".

Ideia de que há só uma verdade e um caminho existe até em espaços religiosos liberais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Raquel Daniel
Imagem: Arquivo pessoal

Dentro dessa leitura bíblica fundamentalista e dogmática, existe uma forma de ser mulher. A interpretação europeia desse livro tem o intuito de levar isso no literal, pois assim conseguem ter um controle sobre os corpos que não sejam de homens brancos, fazendo com que ocorra uma manutenção de poder.

A mulher tem que ser justa e recatada, neutralizando sua experiência e na mulher recai a culpa do pecado, ou seja, o desejo da mulher seduz, é ela quem tem mais propensão em cair nas armadilhas do diabo

Há uma demonização de todas as coisas que estão inseridas no universo feminino e o que era para ser uma experiência, se torna um fardo.

Tendo conhecimento da teologia feminista, eu pude entender que minha fé e o feminismo podem sim, caminhar juntos. Com essa nova forma de ler o texto bíblico, entendi que o processo religioso é um evento e fato sociológico e que minha fé e espiritualidade são outra coisa, mesmo sendo influenciadas por esse evento sociológico, e que existia uma subjetividade minha.

Minha espiritualidade poderia ser construída muito além de um lugar fundamentalista da igreja

As mulheres e pessoas LGBTQIA+ sentem dificuldade em se expressar e de falar o que sentem, pois existe um medo inicial de ir para o inferno, de estar pecando por conta dessa crença limitante. Um caminho para se entender as mulheres no contexto religioso é parar com esse mito de que existe somente uma forma de ser mulher e entender que existe pluralidade e através dela acessamos espiritualidade. A partir disso, conseguimos acolhê-las, seus medos, inseguranças e até mesmo no que são boas.

Aprendi a ler a Bíblia na perspectiva feminina, pois somos ensinadas dessa forma na teologia feminista, mas para além disso, não me iludo de que é um livro dentro de um contexto histórico e social

Raquel Daniel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Raquel Daniel
Imagem: Arquivo pessoal

Quando eu leio a Bíblia entendo que todo processo de libertação do povo foi protagonizado por uma mulher, todas as tomadas de decisões importantes, foram através delas. Duas mulheres dentro dessa narrativa me chamam atenção: Raabe e Maria Madalena. Para além da história, elas têm suas sexualidades muito envolvidas e latentes. Raabe por ser uma prostituta e morar próximo ao muro, o que mostra que ela era uma mulher à margem, mas que foi a responsável pela libertação de toda uma nação, e Maria Madalena porque seu nome faz referência do lugar de onde ela veio, Magdala, onde se sofria muito com os cobradores de impostos e que eram muito organizados politicamente contra o império romano, o que nos faz entender que Maria Madalena estava envolvida nesse processo de mobilização, foi nesse caminho que ela encontrou Jesus e se tornou sua discípula.

Depois de toda essa jornada e descoberta que eu tive, comecei a refletir em como eu poderia ajudar outras mulheres, então comecei a compartilhar com as minhas amigas e depois comecei a escrever

Durante esse tempo, conheci Camila Mantovani, que estava construindo a frente evangélica pela legalização do aborto, e fizemos coisas incríveis. Hoje eu levo isso com uma missão de falar e trocar experiências com outras mulheres, sem a necessidade de abandonar a fé e para essas mulheres, eu digo que precisamos abandonar o medo e que tenhamos muita coragem de reivindicar a história de Jesus, as mulheres que caminhavam com Jesus, e de um Deus que também é uma mulher, uma mãe e que é imagem e semelhança de nossos corpos e experiências, com certeza, essa é a mensagem.