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Tragédia: recrutada na escola, uma das 'preferidas' de Klein morreu aos 22

Yasmin Ayumi/UOL
Imagem: Yasmin Ayumi/UOL

Pedro Lopes e Camila Brandalise

De Universa

30/04/2021 04h00Atualizada em 01/05/2021 23h02

Sabrina* (nome fictício) tinha 17 anos quando, em julho de 2015, foi contatada pelas redes sociais por uma agência chamada Íris Monteiro Eventos. A proposta não era do emprego dos sonhos, mas sim para passar um sábado entregando panfletos para uma marca de biquínis chamada Hype nas imediações do shopping Tamboré, em Barueri (SP). A empresa, porém, parecia grande, e o serviço poderia ser uma porta de entrada para a desejada carreira de modelo. Considerada bonita por todos que a conheciam, Sabrina tinha o biotipo das passarelas.

No dia seguinte à panfletagem que havia feito, Sabrina relatou ter sido contatada por Dani e Iris, "agenciadoras" do suposto esquema de exploração sexual do empresário Saul Klein, 67, com uma outra proposta: um serviço especial, com remuneração bem maior, e que envolveria o "dono da loja" de biquínis.

Como Sabrina relutava em aceitar a proposta, contou que teria recebido visitas de Íris no colégio onde estudava, insistindo para que ela topasse, ao menos, participar da entrevista. E então aceitou passar por uma entrevista com o "dono da loja" — que seria, na verdade, Saul Klein.

Na avaliação, teria sido informada que, se não mantivesse relação sexual com ele, não receberia o pagamento prometido pelo teste. Começaria então uma história envolvendo abusos, traumas e problemas psiquiátricos graves. Cinco anos depois, em 2020, Sabrina tirou a própria vida.

Universa teve acesso a uma carta escrita por Sabrina em 2017, endereçada a Saul Klein, onde ela narra com detalhes uma série de episódios traumáticos que teria vivido durante o convívio com o filho mais novo do fundador das Casas Bahia. A reportagem ouviu, sob condição de anonimato, mulheres que teriam convivido com Sabrina dentro das casas de Klein, além de outras pessoas de seu círculo pessoal.

Klein está sendo investigado pela polícia, por crimes sexuais. As denúncias foram feitas ao MP-SP (Ministério Público de São Paulo), em conjunto, por 32 mulheres: todas acusam o empresário de estupro e afirmam que ele manteria uma rede de aliciamento e exploração sexual — cinco delas alegam que eram menores de idade, como Sabrina, na época em que os abusos teriam sido cometidos.

Universa revelou com exclusividade detalhes das acusações contra Klein a partir da íntegra de depoimentos prestados ao MP, de trechos e decisões do inquérito policial e de processos movidos anteriormente contra o empresário na Justiça. Além disso, foram entrevistadas duas vítimas e seus familiares, entre outras pessoas, para as reportagens "Caso Saul Klein: em relatos inéditos, 9 das 32 mulheres que acusam empresário de estupro descrevem rotina de abusos" e "Anorexia e depressão: vítimas que acusam Klein relatam danos psicológicos".

A reportagem também obteve três contratos nos quais Klein se compromete a pagar até R$ 800 mil pelo silêncio de três garotas. Universa obteve trechos de depoimentos à Justiça em que o empresário confirma o pagamento de dois deles; no terceiro, ele alegou que sua assinatura havia sido falsificada e obteve vitória em primeira instância.

No dia 15 de abril, uma reportagem da Agência Pública revelou outro escândalo sexual envolvendo a família Klein com os mesmos tipos de acordos de confidencialidade assinados com supostas vítimas. O pai de Saul e fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, morto em 2014, é acusado de ter mantido um suposto esquema de exploração sexual envolvendo menores de idade durante décadas.

Em 2020, Saul Klein foi candidato a vice-prefeito de São Caetano do Sul (SP) pelo PSD e declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 61,6 milhões.

Procurado por Universa, Klein, por meio de sua defesa, nega todas acusações (leia mais ao final da reportagem).

Antes de tirar a vida, jovem queria denunciar o empresário

Quando Sabrina aceitou a "entrevista de emprego" oferecida pela suposta agenciadora Andrea, a Puca, teria sido informada de que o homem que iria conhecer era um milionário excêntrico que gostava de organizar grandes festas, cercado por mulheres jovens e bonitas.

O trabalho, que poderia render até R$ 3 mil em um fim de semana, resumia-se a comparecer às festas. Após um teste inicial, feito em um flat, onde tirou fotos de biquíni e colheu impressões digitais, foi chamada para a segunda entrevista na casa de Klein em Alphaville, bairro nobre de Barueri (SP). Antes do encontro, Puca a teria alertado: se ela não satisfizesse os desejos do empresário — quaisquer desejos — não receberia nem os R$ 3 mil da vaga, nem os R$ 1 mil que já lhe eram devidos pelos três dias de testes.

Em um quarto escuro, com dezenas de seguranças e funcionários aguardando do lado de fora, Klein a teria a estuprado ao forçar o contato sexual sem o uso de preservativo.

Dias depois de concluir o ensino médio, Sabrina trocaria os planos de tentar ingressar em uma faculdade pela oportunidade de receber até R$ 5 mil por final de semana tanto na casa de Klein em Alphaville quanto no sítio dele em Boituva (SP). Ela teria abandonado o sonho de ser modelo por um tempo para integrar o grupo de jovens mulheres que passariam dias na casa do empresário sendo coagidas a aceitar abusos sexuais dele.

A jovem chegou a cogitar se juntar a outras 13 vítimas para denunciar formalmente o empresário ao Ministério Público de São Paulo, em 2020. O processo, atualmente em fase de inquérito policial, conta com 32 mulheres.

Trancada 48h no quarto

A rotina de Sabrina dentro do suposto esquema de exploração sexual de Saul Klein seria diferente da mantida pela maioria das garotas. Suas colegas na casa contam que ela se tornou rapidamente uma das "preferidas" do "excêntrico milionário". Isso significava ser selecionada, com frequência, para passar as noites com ele, às vezes várias consecutivas, sem poder sair do quarto.

Nos finais de semana, os eventos migravam para o sítio em Boituva (SP) e podiam contar com mais de 40 garotas simultaneamente.

No vídeo abaixo, obtido com exclusividade por Universa, Sabrina aparece em uma festa vestida de odalisca dançando ao lado de Klein:

Em vídeo, Saul Klein aparece dançando com jovem que alegou ter sido vítima de abuso

UOL Notícias

Depois de deixar a casa, em 2017, e antes da existência de qualquer denúncia formal contra Saul Klein, Sabrina enviou uma carta ao empresário, assinada por um advogado, juntamente com outras duas garotas que teriam participado do suposto esquema de aliciamento.

O documento, do qual Universa obteve uma cópia, relata vários episódios que ela teria vivido com o empresário e revela o estado de saúde mental de Sabrina à época: "um quadro agudo de distúrbio emocional decorrente dos fatos ocorridos na casa do Sr. Saul Klein".

Nos meses finais de seu período de dois anos dentro do suposto esquema de exploração sexual de Klein, ela relatou que era obrigada a ficar 48 horas consecutivas dentro do quarto do empresário, sob efeito de álcool e de remédios hipnóticos para insônia. Segundo a bula do fármaco usado, quando sua ingestão é associada à bebida alcoólica "promove um aumento dos efeitos sedativos ou hipnóticos, prejudicando o estado de vigília, concentração e os reflexos".

"Estou com dor e sangramento e ele não deixa eu me mexer"

Em 2017, Sabrina havia decidido deixar a casa de Klein pela primeira vez, mas teria sido contida por seguranças e funcionários. Ela então teria enviado um áudio a Carlão, um dos motoristas do empresário que estava plantão para que ele a tirasse dali, mas não foi atendida. Acabou convencida a permanecer. Ela teria deixado o esquema apenas no segundo semestre daquele ano, depois de ter vivido outro episódio traumático.

Em fevereiro de 2017, Sabrina começou a sentir um enjoo muito forte. Trancada no quarto com Klein no sítio em Boituva (SP), escreveu para outra garota: "Estou tão enjoada que não consigo relaxar", disse, na troca de mensagens a qual Universa teve acesso. Ela contou à colega que estava com muita dor no útero e tendo sangramentos.

"Está há uns meses sangrando, mas hoje está diferente", escreveu. Após essa conversa, Sabrina expeliu um corpo estranho de dentro da vagina. Assustada, disse à amiga que Klein não queria deixá-la sair do quarto. "Ele está grudado em mim. Fica falando para eu não sair do quarto, não posso nem me mecher [sic]. Estou morrendo de dor no útero."

conversa de sabrina - saul klein - Reprodução/UOL - Reprodução/UOL
Em mensagem atribuída a Sabrina e obtida por Universa, ela conta a uma amiga estar com dor no útero e presa no quarto de Klein
Imagem: Reprodução/UOL

Após três dias dentro do quarto sem sair, ela teria finalmente convencido o empresário da gravidade da situação. Ao invés de ser levada ao hospital, teria sido encaminhada para a casa de Klein e colocada em um quarto privativo.

Ali, teria sido atendida pela médica Sílvia Petrelli, apontada por várias mulheres ao Ministério Público como a responsável pelo tratamento domiciliar de diversas infecções sexualmente transmissíveis que as vítimas teriam contraído por serem obrigadas a fazer sexo sem preservativo com Klein.

Outro médico, o cirurgião plástico Ailthon Takishima, que já tinha realizado aplicações de botox em Sabrina e em outras mulheres, teria participado do atendimento. Ela dizia não se recordar do diagnóstico preciso, mas que havia sido tratada com antiinflamatórios, um antiviral receitado para herpes e três pomadas de uso tópico.

Procurada por Universa, Petrelli afirmou que jamais praticou ou presenciou qualquer ato ilícito. "Demonstrei isso à delegada de Barueri [responsável pelo inquérito policial] e nada mais tenho a comentar a respeito", disse. Por meio de sua secretária, Takishima informou que não iria se pronunciar: "O que ele tinha para falar já conversou com a delegada do caso".

Na carta enviada a Klein em 2017, Sabrina dizia que o episódio havia sido traumático e que tinha certeza de que havia sofrido um aborto espontâneo. Ela deixaria de participar do suposto esquema poucos meses depois.

"Era muito delicada, mas estava muito triste"

"Quando cheguei na casa ela já era uma das preferidas do 'Zinho' [apelido pelo qual Saul Klein pediria para ser chamado], conta Raquel* (nome fictício), uma das garotas que esteve com Sabrina nas residências de Klein em 2017.

"Ela passava muito tempo com ele, mas já parecia estar bem mais triste, deprimida", diz. Ela conta que a amiga fazia uso frequente de medicamentos hipnóticos misturados com álcool durante o período na casa.

Outra jovem próxima de Sabrina afirma a Universa: "Ela sofreu demais na mão do Saul [...] É por ela que a gente precisa que a Justiça seja feita."

Raquel conta que perdeu o contato com Sabrina quando ela própria precisou ser internada para se tratar de um trauma daquele período — e sobre o qual ela prefere não falar. Ela gosta de se lembrar que a garota com quem conviveu no período mais difícil da vida morava em um lindo apartamento em São Paulo, decorado com flores. E que tinha consciência de que havia sido vítima de uma relação cheia de abusos.

Em setembro de 2020, Sabrina tirou a própria vida, aos 22 anos. Nas redes sociais, como último registro, deixou a foto de um girassol.

Outro lado

O processo instaurado pelo Ministério Público de São Paulo em novembro está na fase do inquérito policial e da coleta de depoimentos. Vítimas e testemunhas estão sendo ouvidas pela polícia. O MP aponta a possibilidade de Klein ter cometido nove crimes: tráfico de pessoas, estupro, estupro de vulnerável, favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, mediação à satisfação de lascívia (induzir alguém a satisfazer os impulsos sexuais de outra pessoa) favorecimento da prostituição e exploração sexual e manutenção de casa de prostituição (com possibilidade de aumento de pena de 1/3 a 2/3 por transmissão de infecções sexualmente transmissíveis) e falsificação de documentos públicos. As penas para esses crimes vão de um a 15 anos de reclusão, com aplicação de multa em alguns casos.

A Universa, o advogado de Saul Klein, André Boiani e Azevedo, nega as acusações de crime sexual contra seu cliente. Ele afirma que o empresário teve contato com diversas jovens nos últimos anos e que se relacionou com algumas delas, mas que era uma relação de "sugar daddy", por meio da qual se "mantém um pagamento, mas não por sexo, [em que ele] sustenta, trata todas como namoradas, essa é a verdade em relação ao Saul".

Azevedo afirma porém, que nunca houve pagamentos diretos às moças por parte de Klein, pois isso seria intermediado pela empresa de eventos Avlis. "Elas saberiam que poderia haver aproximação sexual, mas que não seria obrigatório. Nada do que se diz em termos de violência, de obrigatoriedade, de coação, ele participou."

Sobre as alegações de que os abusos de Klein teriam causado danos psicológicos, Azevedo lamenta "que façam esse tipo de associação, na medida em que ele não praticou essas condutas que elas relatam". "Se existir algum trauma, alguma coisa, ele desconhece, e lamenta profundamente, mas não tem nenhum tipo de responsabilidade por isso."

O advogado confirma que os médicos Silvia Petrelli e Ailthon Takishima trabalhavam nas casas de Klein, mas que "nenhuma moça jamais foi obrigada a fazer coisa alguma [intervenção estética]. Isso era algo que o Saul disponibilizava".

E afirma que a maioria das mulheres "já comparecia com doenças venéreas". "A maioria dessas moças já tinha uma vida de garota de programa, de acompanhantes, se apresentavam ali em uma situação de modelo para fazer uma figuração e aceitar a aproximação por interesses próprios delas".

Sobre as vítimas alegarem terem sido enganadas em relação ao trabalho que fariam, Azevedo diz que Klein não tinha conhecimento disso, pois contratou uma empresa para fazer o processo diretamente com as garotas e para pagá-las pelos trabalhos. Segundo ele, "o que era passado para o Saul" era que a empresa informaria que haveria "aproximação sexual". "Elas poderiam concordar se quisessem. Quando chegavam para falar com ele, jamais mostraram qualquer tipo de desconhecimento."

Em relação às acusações de que Klein se relacionaria com menores de idade, o advogado diz que a Avlis enviava documentos falsos. E que as denúncias contra seu cliente são parte de uma tentativa de extorsão da dona da agência, Marta Gomes da Silva, após ela ter seus serviços dispensados em 2019. Klein, no entanto, não registrou denúncia de extorsão contra Marta.

Sobre as denúncias de violência sexual, física e psicológica, Azevedo afirma que isso nunca aconteceu. "Assim como tem esses relatos das pessoas [denunciando], existem inúmeras outras negando essa situação [de violência] e demonstrando a realidade."

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

É possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do MMFDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos).
Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.

CVV atende em casos de pensamentos suicidas

Quem tem pensamentos suicidas ou está com depressão, entre outras dificuldades relacionadas à saúde mental, e precisa de apoio emocional, pode ligar para o CVV (Centro de Valorização da Vida) no número 188, 24 horas por dia. O atendimento também pode ser feito por chat no site da entidade e por e-mail. Existem ainda os prontos-socorros psiquiátricos, que podem ser especializados ou funcionar em hospitais gerais.