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Ex-procuradora Deborah Duprat: "Passou da hora de Bolsonaro ser condenado"

Debora Duprat, ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão - Geraldo Magela/Agência Senado
Debora Duprat, ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão Imagem: Geraldo Magela/Agência Senado

Camila Brandalise

De Universa

11/03/2021 04h00

Primeira mulher a comandar a Procuradoria-Geral da República, interinamente por 20 dias em 2009, a ex-procuradora federal Deborah Duprat enviou uma representação à PGR em janeiro deste ano pedindo que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fosse investigado por crimes cometidos na condução da pandemia.

O pedido, assinado também por outros cinco juristas, foi arquivado em fevereiro, sob alegação de que o surto de coronavírus não é responsabilidade de uma só pessoa. Mas ela não se dá por vencida. "Não recorremos porque não queríamos entrar em disputa. Mas vivemos desafios permanentes, o meu é enfrentar o governo", diz Duprat, hoje aposentada e ainda ativista dos direitos humanos, em entrevista a Universa.

Na conversa, ela opina sobre a situação política do país e relembra momentos em que sua "condição de mulher" ficou mais evidente nos 34 anos de carreira pública, como quando foi exonerada do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, em 2019, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. "Ele foi canalha, foi covarde, nunca sequer falou comigo antes disso, não me deu uma explicação. Isso jamais aconteceria com um homem."

UNIVERSA - Quais crimes a senhora acredita que foram cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro?

DEBORAH DUPRAT - Nós pedimos condenação por crimes contra saúde, exposição da população ao perigo, má administração de verbas públicas por causa da aquisição de cloroquina, e prevaricação, que é quando um gestor público faz prevalecer sua vontade pessoal acima do dever. A representação tem por base um estudo da pesquisadora Deisy Ventura, professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), que faz uma linha do tempo mostrando como o presidente promoveu situações que davam ensejo à violação das medidas sanitárias de distanciamento.

Logo no começo da pandemia, ele viajou para a Flórida, nos EUA, que era um local já de acentuada contaminação, retornou sabendo que parte de sua comitiva foi contaminada e, mesmo assim, foi às ruas e promoveu aglomerações, sem máscara. Configura, a meu ver, crime de epidemia, considerado hediondo. Também encampamos uma representação anterior afirmando que houve uma política intencional de não vacinar, denunciando o investimento em cloroquina.

A representação foi arquivada devido à "impossibilidade material do surto do novo coronavírus ser imputado a uma pessoa". Como avalia esse argumento?

A gente não falou que Bolsonaro provocou o surto. Na verdade, ele criou as condições para que o surto se expandisse de maneira impressionante. Nós superamos os Estados Unidos em número de mortes [diárias] e o presidente desestimula uso de máscara e distanciamento social. Vemos também a capacidade hospitalar comprometida e o imbróglio na aquisição de vacinas. Mas acredito que ele ainda será responsabilizado pela maneira como está conduzindo a pandemia.

Na minha visão, como analista do direito, passou da hora de ele ser condenado. Com três meses de governo já havia sinais evidentes de que caminhávamos pra destruição do espaço público.

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, está sob investigação. Na sua opinião, ele deve ser responsabilizado pela condução da pandemia?

Deve, mas não sozinho. Seria o máximo da hipocrisia considerar Pazuello culpado por esse quadro. Ele, na verdade, é culpado por estar nesse cargo. Os ministros da Saúde anteriores saíram.

A senhora sente que já fez sua parte? Ou pretende agir novamente, apresentar uma nova representação?

Não recorremos da decisão porque não vamos entrar em disputa eterna com o procurador-geral da República, que já mostrou sua posição. Mas nunca vou sentir que fiz a minha parte, vivemos desafios permanentes, e o meu é enfrentar o governo Bolsonaro. Me aposentei para isso. Como advogada, tenho atuado em questões como a paralisação da reforma agrária e, mais recentemente, contra a portaria da ministra Damares Alves, que cria um grupo de trabalho para discutir uma nova política de Direitos Humanos sem participação da sociedade civil, o que é inconstitucional.

Que problemas sociais mais se acentuaram no último ano?

Todas as desigualdades do país ficaram piores e o governo não tem capacidade de atuar porque minou todos os órgãos na área dos direitos humanos, repassando investimentos baixíssimos, com pouca execução. Não demarcar terras indígenas, por exemplo, tornou-se particularmente perverso na pandemia. Esses territórios vêm sendo invadidos, e os indígenas foram extremamente contaminados. E nas favelas brasileiras onde não há como se adotar política de distanciamento porque são regiões de altíssima densidade populacional. Não houve planejamento especial para grupos mais vulneráveis.

E a sua vida, como foi afetada pela pandemia?

No começo, causou um turbilhão de emoções negativas. Tenho pouca intimidade com o mundo virtual. Achei que fosse acabar com a minha capacidade de ação, mas não. Meu cotidiano ficou intensíssimo. Mas me pega a distância da família. Meu pai teve covid, cheguei a receber a notícia de que ele tinha morrido, meu irmão pediu a documentação para o hospital e viu que se tratava de outra pessoa. Vivi situações de angústia extrema, mas estou aqui, tentando sobreviver, como todo mundo.

Suas críticas ao governo Bolsonaro lhe causaram exoneração do cargo no Conselho Nacional dos Direitos Humanos, em 2019, feita pelo procurador-geral da República, Augusto Aras a pedido da ministra Damares. Como avalia esse episódio?

Ele foi canalha, foi covarde, nunca sequer falou comigo antes disso. E aí a gente se vê na condição de mulher, porque isso jamais aconteceria com um homem. Ele fez isso sem nunca me dar uma explicação. Mas isso para mim foi um evento que passou.

Na época, seu cargo era de procuradora dos Direitos do Cidadão, que ocupou de 2016 a maio de 2020, certo?

Sim. E continuei o enfrentamento ao governo. Apresentei ações contra Bolsonaro sobre a pandemia, fiz a crítica do encontro do presidente com Sebastião Curió, reconhecido como torturador durante a ditadura pela Comissão da Verdade. Atos oficiais têm que ter caráter pedagógico e republicano, não podem ser personalistas. Atuei ainda contra os projetos de lei sobre terrorismo, para evitar que movimentos sociais fossem criminalizados.

A senhora foi a primeira mulher procuradora-geral da República, em 2009. Outras duas vieram depois, somando três entre mais de 40 nomes. Por que tão poucas?

Historicamente, o Ministério Público Federal, do qual a PGR faz parte, é uma instituição masculina, sempre foi. Lembro que quando fiz a prova oral do meu primeiro concurso estava grávida de nove meses, era uma banca só de homens. Eles estavam nervosos, perguntando se o bebê ia nascer a qualquer momento. Fiquei pensando: 'Será que esses senhores nunca foram pais?'. Só 30% são mulheres. Não diria que o órgão é hostil, mas os cargos são pensados para homens. Eu que cheguei por acaso, pois fui interina por 20 dias. Mas consegui fazer bastante coisa.

Uma das suas ações levou à discussão no STF sobre aborto em caso de anencefalia, que foi autorizado. Atualmente, há projetos de lei para retirar esse direito. Vê risco de retroceder?

O cenário nacional está muito difícil. Há projetos para impedir aborto inclusive em casos de estupro. Na minha visão, deveria ser legalizado [em todos os casos]. Se falamos em autonomia e igualdade, não é razoável que, se uma criança cresce no corpo de uma mulher, um conjunto de pessoas decida por ela. Mas duvido que o Supremo coloque essa questão para deliberação no atual momento, até por estratégia, não seria viável votar isso agora.