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Mães solo e LGBTQ+, elas sofrem preconceito para começar relacionamentos

Noiva há dez meses, Jessica Negreiros, 28 anos, enfrentou não apenas a resistência da companheira, Tainá Corrêa, de 27, pelo fato de ser mãe de Jorge Henrique, de 8, e também por já ter sido casada com um homem - acervo pessoal
Noiva há dez meses, Jessica Negreiros, 28 anos, enfrentou não apenas a resistência da companheira, Tainá Corrêa, de 27, pelo fato de ser mãe de Jorge Henrique, de 8, e também por já ter sido casada com um homem Imagem: acervo pessoal

Laís Rissato

Colaboração para Universa

11/10/2020 04h00

Ser LGBTQ+ no Brasil, quase sempre, é carregar na construção e na bagagem das próprias vivências muitas incertezas, dores, angústias e preconceito. Quem faz parte da letra L da sigla, de lésbicas, ou B, de bissexuais, no caso das mulheres, ainda precisa lidar com o machismo e outras questões de gênero e sociais.

Um dos grupos que mais parece sofrer ainda mais nesse contexto são as mães solo, por enfrentarem uma barreira ainda maior e dentro da comunidade: não conseguem se relacionar afetivamente com outras mulheres ou encontrar um amor por causa daqueles que, ironicamente, são seus maiores amores: os filhos.

Miriam Nahme tem 29 anos, é psicanalista e mãe de Laura, de 4, menina doce e que é sua cópia. Descobriu a atração por mulheres ainda na adolescência, aos 13 anos, mas sempre reprimiu esse desejo. Tentou, por muito tempo, reproduzir o modelo tradicional de família, mesmo que pra isso precisasse abrir mão do próprio bem-estar e felicidade. "Fiquei com o pai da minha filha até chegar um momento em que não conseguia mais me relacionar fisicamente com ele, o sexo era uma coisa complicada, quase como uma obrigação. Então, me separei e me mudei para a casa dos meus pais com a Laura. Me entender como lésbica foi um processo de reencontro, me obrigar a estar com homens não me fazia mais bem", explica.

Miriam Nahme tem 29 anos, é psicanalista e mãe de Laura, de 4 - acervo pessoal - acervo pessoal
Miriam e a filha Laura: "Toda vez que falo que sou mãe a conversa acaba", conta
Imagem: acervo pessoal

Quando começou a frequentar e se inserir em grupos de mulheres, no ano passado, conta que, toda vez que falava sobre Laura, as conversas logo eram encerradas sem muitas explicações. "É algo velado. Não tenho nenhuma vergonha do meu histórico, do meu processo, então sempre falo da minha filha, e o assunto acaba. É quase como se ser mãe te desautorizasse a ser quem você é; é praticamente um estímulo pra você voltar pro armário. Estou em um momento da minha vida em que já desisti de conhecer alguém", lamenta Miriam.

Mesmo sem escutar diretamente que o problema ou a falta de interesse vem do fato de ser mãe e amar mulheres, Miriam enxerga uma ligação muito forte nessa questão com o seu passado heterossexual. A psicóloga e psicopedagoga Grace Falcão endossa essa teoria explicando que o medo pode vir da insegurança de que a mulher que é mãe não seja uma "lésbica de verdade", ou seja, não gosta, genuinamente, de mulheres. "Quem tem um filho vai ter um vínculo para sempre com o pai da criança, e isso pode ser muito difícil de aceitar. É como se sempre existisse a possibilidade dessa mulher voltar a ter um relacionamento com um homem, mesmo isso não acontecendo. Há uma fantasia na cabeça das pessoas de que ser homossexual não combina com a maternidade", aponta a profissional.

Um local de acolhimento

Foi em um coletivo para mulheres pretas, periféricas, lésbicas e bissexuais de SP que a executiva de negócios Mônica Andrade, 34 anos, e mãe de Erick, de 12, encontrou o acolhimento que não acontecia em outros ambientes. Com eventos e festas nos quais muitas mães participavam, ela diz que havia nos espaços até uma creche para que os filhos pudessem ficar bem amparados enquanto as mães se divertiam.

Elas são mães, amam mulheres e revelam preconceito por parte delas na hora de se relacionar  - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Mônica e o filho Erick: ela é bi e diz que algumas pretendentes não sabem lidar com o fato de ela já ter sido casada e ser mãe: "dizem que é muita responsabilidade",
Imagem: Acervo pessoal

Solteira e bissexual, teve apenas um relacionamento sério com homens, justamente o pai do seu filho. Os outros foram com mulheres. Mesmo assim, o preconceito vem forte, e não só por parte delas, mas também da família e de outros homens. "Quando contei sobre esse coletivo para uma ex, ela falou 'credo!', por ter muitas mães, e me senti ofendida, porque a realidade dela era bem diferente da minha. Também ouvi certa vez de outra pessoa: 'você tem filho, inventou isso (se relacionar com mulheres) agora. Não tem nem vergonha na cara'. Algumas pretendentes não sabiam lidar com o fato de eu ter sido casada, ser mãe, falavam que não dava para se relacionar com a sombra do meu ex, e que é muita responsabilidade estar com alguém que tem filho, como se ele fosse ser dependente delas. E o Erick entende tudo muito bem, sabe que gosto de mulheres e não tem qualquer problema com isso, ", afirma.

Por isso, não falar sobre o filho em um possível encontro nunca foi uma opção; inclusive, é uma das primeiras coisas que Mônica conta, para não correr o risco de conhecer alguém que não vá gostar dele ou aceitá-lo. Segundo Grace, definitivamente, esconder a informação, na tentativa de ter alguma abertura inicial, não é uma boa ideia. "A pessoa precisa entrar inteira em uma relação, porque gosta da outra, e não pela condição que ela tem. Todo mundo vem com um pacote, tem um histórico, um passado. A alternativa para conhecer alguém bacana é, assim como para qualquer um, continuar tentando. Seja em grupos com os quais você se identifica, por aplicativos, em redes sociais. Se relacionar é difícil, assim como encontrar alguém que tenha as mesmas características e vontades que a gente, mas em algum momento isso chega".

Um final feliz a três

Noiva há dez meses, a assessora de eventos e trancista Jessica Negreiros, 28 anos, enfrentou não apenas a resistência da companheira, a educadora física Tainá Corrêa, de 27, pelo fato de ser mãe de Jorge Henrique, mas também por ter sido casada durante seis anos com o pai de seu filho, que tem 8. Sua história é um pouco parecida com a de Miriam, já que ela também entende sua atração por mulheres desde a adolescência e reprimiu esse sentimento por muito tempo; mas pesa o fato de ser evangélica, assim como Tainá.

"Nos conhecemos em 2016, fomos nos aproximando aos poucos, mas, se a pessoa é casada perante o evangelho e se separa, uma outra não pode vir e querer se relacionar com essa que está separada, então, isso já era um problema. E, de repente, meu filho virou um tabu para as duas. Nos gostávamos, só que ela dizia que não queria ser mãe e nem conviver com meu filho. Foi quando tivemos uma discussão bem feia e nos afastamos, mas depois de um tempo ela disse que queria tentar", conta, sempre enfatizando sua orientação sexual. "A própria mãe da Tainá dizia: 'quem te garante que essa menina vai te levar a sério?' Já escutei, 'ah, você não é lésbica, pode ficar com um cara, afinal, tem um filho'. Não! Eu sou lésbica, sim!".

Jessica Negreiros enfrentou resistência da agora noiva, Tainá Corrêa, por antes ter sido casada com um homem - acervo pessoal - acervo pessoal
Jessica Negreiros enfrentou resistência da agora noiva, Tainá Corrêa, por antes ter sido casada com um homem
Imagem: acervo pessoal

Hoje, apesar de ainda morarem em casas separadas, o casamento está nos planos, e Jorge encontrou em Tainá não uma mãe, mas uma figura carinhosa e cuidadosa. "Meu filho a respeita muito, a convivência já é natural. Na igreja, ouvimos a seguinte passagem: 'Sozinha, a pessoa corre o risco de ser atacada e vencida, mas duas pessoas juntas podem se defender melhor. Se houver três, melhor ainda, pois uma corda trançada com três fios não se arrebenta facilmente'. Entendi como um recado direcionado a nós, à nossa família. E sei que essa é uma história que nós três temos que viver", finaliza Jessica, se sentindo, enfim, verdadeiramente feliz e completa.