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Livro reúne histórias de mulheres que mataram maridos em legítima defesa

A jornalista, roterista e pesquisadora Sara Stopazzolli  - Vania Cardoso/Divulgação/Arquivo pessoal
A jornalista, roterista e pesquisadora Sara Stopazzolli Imagem: Vania Cardoso/Divulgação/Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

02/09/2020 04h00

"A agressão dele começava literalmente do nada: cismava com alguma coisa e, pronto, você se sentia um lixo. Eu não podia estudar, porque eu era 'burra'. Quando faz com você, você vai aturando, mas, quando faz com o seu filho, é complicado."

Agredida física e psicologicamente pelo marido, a assistente social Úrsula Francisco, de Nova Iguaçu, deu um fim à relação abusiva quando ele ameaçou matá-la, e ao filho, com o revólver que guardava no quarto do casal. "Ele começou simplesmente do nada a dizer que ia matar a mim, o meu filho, e depois ia se matar. Naquele dia, eu sabia que ia sair um caixão dali, eu só não sabia qual."

Antes de o marido alcançar o revólver, ela o fez e disparou. "Dei um tiro nele. E ali acabaram todos os meus problemas. Acabou o sofrimento do meu filho e o meu também", diz. Ela foi absolvida sumariamente.

A assistente social Úrsula Francisco - Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)  - Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)
A assistente social Úrsula Francisco
Imagem: Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)

O relato de Úrsula é uma das seis histórias reais de mulheres que viveram relacionamentos abusivos e mataram seus agressores em legítima defesa compiladas em um livro que acaba de ser lançado como desdobramento do documentário "Legítima Defesa", de 2017.

"O que eu busco é contar histórias que toquem e sensibilizem o outro até ele deixar de normalizar estatísticas de violência e as compreenda como histórias humanas, dando voz a mulheres que por tanto tempo foram silenciadas", diz a jornalista, pesquisadora e roteirista Sara Stopazzolli, 41, autora da obra, intitulada "Elas em Legítima Defesa - Elas Sobreviveram Para Contar". O livro narra a trajetória de sobreviventes da violência doméstica no Rio e em São Paulo.

Em comum, todas as personagens mataram seus parceiros a fim de que elas próprias não entrassem para as estatísticas de mortes por violência doméstica no Brasil. O olhar empático a essas mulheres permeia a produção do livro, uma versão estendida do documentário que a irmã gêmea de Sara, Leda Stopazzolli, havia produzido.

Agora, Sara colocou no livro quatro histórias que ficaram de fora do documentário. Com elas, são seis casos de mulheres que alegaram o princípio da legítima defesa, previsto no artigo 25 do Código Penal, para justificar o assassinato de seus parceiros.

"É importante não normalizar esse tipo de situação e humanizar os números da violência doméstica", diz a autora.

Ela conta que, ao fazer a pesquisa para o documentário, elencou 50 casos ocorridos ao longo de dez anos. Desse total, dez mulheres foram localizadas e seis aceitaram se expor. Entre desistências de última hora e uma morte, duas acabaram retratadas na produção, premiada no festival de cinema Mujeres en Foco, em Buenos Aires, em 2017. Uma terceira não quis se expor, mas o caso foi dramatizado, com atores.

"São histórias incríveis, diversas, de mulheres de classe baixa e média baixa, o que rendeu um mosaico interessante. Em geral, são mulheres que mataram parceiros abusivos e alegaram legítima defesa, que se entregaram e se sentem culpadas", afirma.

"Quando vi, a faca pegou no coração dele. Era para ter sido comigo"

Também personagem do livro e do documentário, a estudante de direito Diane Cristina se lembrou de quando estava feliz, com a filha, em uma festa de final de ano no bairro. Então com quatro anos, a menina havia acabado de ganhar uma boneca de presente de Natal. Quando o ex-parceiro surgiu no local, a reação, conta Diane no documentário, foi péssima: "'Você está fazendo o que aqui, sua piranha?' [ele disse a ela]. Ele foi da festa até em casa me agredindo, fazendo escândalo. Então eu peguei uma faquinha de pão e abri a boneca. Ele pegou a faca e me disse: 'Você não vai voltar comigo, não?'. E aí começou a gritar, pegou a faca e ia enfiar em mim".

A estudante de direito Diane Cristina - Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)  - Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)
A estudante de direito Diane Cristina
Imagem: Reprodução / Documentário "Legítima Defesa" (Ocean Films)

Na reação ao gesto do rapaz, ela tomou o objeto das mãos dele. "E fiz assim [gesticula apontando com a faca]. Quando vi, pegou no coração dele. Era para ter sido comigo porque ele pegou a faca para me matar, e não eu que peguei a faca para matá-lo", relata, na produção agora desdobrada em livro.

Antes do episódio em si, ela afirma, as ameaças e agressões haviam se tornado constantes quando o então parceiro começou a usar drogas. "Ele vivia ameaçando que, se eu terminasse com ele, ia me matar, e matar a própria filha. Aí, me afastei dele."

A jovem quer ser defensora pública. No trabalho de conclusão da graduação, o tema dela seria legítima defesa —justamente a tese da defesa que a livrou da condenação judicial.

Livro poderia incentivar pessoas a matar, ela ouvia

"Elas em Legítima Defesa" foi escrito sete anos após o começo da pesquisa, em 2013 —tempo suficiente, avalia Sara, para que ela própria e também as personagens que formam a narrativa pudessem elaborar os fatos passados.

"A sentença de um juiz que absolveu uma dessas mulheres ou a cena no documentário de uma delas se formando são situações que até hoje eu vejo e choro. São momentos de superação que ainda hoje me tocam. À época, no entanto, eu ficava em choque, passava noites sem dormir", lembra.

Ao comentar sobre a produção do livro, a escritora recorda que eram comuns comentários que reforçavam o julgamento direcionado às sobreviventes de violência doméstica.

"De alguns, eu ouvia que o livro poderia incentivar as pessoas a matar, pois dava voz a 'mulheres assassinas'. De outras pessoas, era comum ouvir: 'Por que você não escreve comédia?' Acredito que conseguimos dar um recorte não sensacionalista, no documentário, porque se tratava de um filme sobre violência doméstica. E, de tudo o que as mulheres nessas situações costumam passar em uma sociedade ainda enviesada pelo machismo, muitas sequer sobrevivem para contar suas histórias."

"Humanizar essas mulheres", portanto, nas palavras da roteirista e escritora, seria uma tarefa do filme a ser desdobrada em livro.

Indagada se ela vê diferenças no debate das pautas de gênero de 2013, quando teve a ideia de fazer o documentário, para cá, Sara diz acreditar que sim.

"Sinto que há uma mudança acontecendo: a violência contra a mulher é um assunto mais debatido, há um público mais atento a isso. Também temos mais recentemente o crime de feminicídio [tipificado na lei federal 13.104, de 2015], e não apenas a figura do 'crime passional' que era tão presente nos programas policialescos da TV", diz.

Por outro lado, a jornalista ainda sente a necessidade de se discutir a violência doméstica atrelada ao debate de gênero.

"É preciso desconstruir conceitos que levam à objetificação e à ideia da mulher como um ser inferior. E, no momento em que vivemos, em que gênero virou um palavrão e as políticas públicas voltadas para as mulheres estão sendo desmontadas, resta a nós, enquanto sociedade, fazer o que está a nosso alcance para mudar essa realidade: seja compartilhando informação, seja educando meninos e meninas, homens e mulheres contra o machismo."

Renda do livro será revertida ao combate à violência contra a mulher

Sara é de Florianópolis, mas mora no Rio há 20 anos. Com a irmã, criou a produtora Mera Semelhança em 2013, onde desenvolve projetos audiovisuais. Recentemente, dirigiu e escreveu o roteiro do documentário em curta-metragem "Escola de Homens", da mov.uol, sobre os encontros de um grupo dedicado à reeducação de homens que praticaram violência doméstica.

Com o podcast Luneta do Crime, lançado neste ano, ela narra histórias de crimes reais, embora desconhecidos do grande público, cometidos contra mulheres no Brasil.

O livro, lançado há duas semanas pela editora DarkSide Books, está à venda no formato e-book. A renda será revertida para a ONG Amac, que atua no combate à violência contra a mulher na Baixada Fluminense.

Violência contra a mulher

De acordo com os dados do Atlas da Violência 2020, divulgado na última quinta-feira (27), o Brasil teve uma mulher assassinada a cada duas horas no ano de 2018. Ao todo, foram 4.519 vítimas de homicídio, o que representa uma taxa de 4,3 para cada 100 mil habitantes do sexo feminino. O estudo anual é produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Os dados não separam o tipo de crime, como feminicídio, por exemplo. Como eles são coletados do Sinam (Sistema Nacional de Atendimento Médico), só é possível saber onde ocorreram, não o tipo penal. Pesquisadoras envolvidas no levantamento, porém, estimam que 30% desse universo de mulheres mortas foram vítimas de feminicídio, uma vez que elas morreram em casa.

"Desses 4.519 homicídios, mais ou menos 30% aconteceram na residência delas, e a gente sabe que é em casa onde essas mulheres estão mais vulneráveis à violência doméstica, então podemos concluir que foram feminicídios", explicou a Universa, na semana passada, a pesquisadora Juliana Martins.

Ao todo, segundo o Atlas, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras.