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"A maquiagem tem poder discursivo e até político", diz colunista Fabi Gomes

Natália Eiras

Colaboração para Universa

11/07/2020 04h00

Fabi Gomes, 45, é mulher celebrada no meio da moda e beleza brasileiras. A maquiadora de 1,80m, cabelos volumosos e com seu inseparável batom vermelho trabalha, desde 2004, nos bastidores de edições da São Paulo Fashion Week e já foi porta-voz da M.A.C, marca queridinha dos aficionados por maquiagem. A trajetória de sucesso, porém, não a levou a uma relação romantizada com make. "Nunca fui aquela criança que maquiava a Barbie, por exemplo", diz, em entrevista por telefone. Ela começou a maquiar porque tinha que trabalhar.

Paranaense de Curitiba, Fabi, que estreou nesta semana sua coluna em Universa, pegou gosto em pintar o rosto na adolescência, quando saía para o "rolê" com os amigos, em festas alternativas. O visual preferido era com os olhos, grandes, pintados de preto. "As pessoas me achavam assustadora. Os amigos da minha irmã me perguntavam se eu era punk, gótica." E ela gostava de deixar essa impressão marcante nos outros. "Eu acho que era por isso mesmo que usava maquiagem, para me proteger", afirma uma das 8 novas colunistas de Universa.

A então estudante de teatro visitou São Paulo aos 21 anos,show da Bjork e para a Mostra Internacional de Cinema. Decidiu ficar. "Liguei para minha mãe dizendo que tinha arranjado um trabalho. Ela se assustou porque era para eu voltar", ri.

Trabalhou como garçonete, vendedora de cursos, secretária executiva em um escritório de arquitetura, vendedora em uma loja da Oscar Freire. Ela se formou em direito, mas, como tinha familiaridade com os pincéis por conta do seu tempo no teatro, foi chamada para trabalhar na primeira loja da M.A.C no Brasil, em 2002. Virou maquiadora.

Talvez seja a trajetória pouco convencional que torna Fabi uma grande pensante da beleza. Ela gosta de teorizar, esmiuçar o porquê de usarmos um olho esfumado, um batom nude. Fala sobre como as mulheres aprenderam, ao longo da vida, a serem belas para os outros, e a força política que o contrário pode trazer. Ela mesma tem sua parcela de insegurança ao sair de casa sem corretivo.

Veja o papo completo a seguir:

UNIVERSA: Como era a sua relação com maquiagem na adolescência? Você sempre gostou de se pintar?

FABI GOMES: Não tenho uma história romantizada com a maquiagem, de pintar a Barbie, por exemplo. Na pré-adolescência, eu tinha um grupo de amigos interessados em moda, em artes, muita gente do teatro. E aí comecei a me interessar e a explorar o meu rosto. Usava um olho mais preto, porque não tinha muita maquiagem. E esse mesmo grupo começou a promover umas festas bem alternativonas, underground, e fui explorando. Lembro claramente de uma festa em que eu pintei a cara todo de uma cor e um risco preto.

Então era uma coisa mais artística do que dsejo de ficar bonita?

Tinha também a coisa de ficar bonita, mas ficar bonita de uma forma alternativa. As pessoas me achavam assustadora. Os amigos da minha irmã ficavam perguntando se eu era punk, gótica. Era uma coisa mais de me expressar, mas não sei se eu tinha muito essa consciência. Também era uma maneira de ser assustadora, de me proteger, porque eu não tinha essa ideia intelectual tão formada.

Quando você percebeu que queria trabalhar com maquiagem?

Eu não percebi. Lá em Curitiba, comecei a fazer faculdade de teatro, onde, principalmente de produção independente, você precisa se maquiar. Com 21 anos, vim para São Paulo para o show da Bjork e estava rolando a Mostra Internacional de Cinema. E fui ficando, fui trabalhar como garçonete em um restaurante, fui secretária executiva. Nunca tive medo de trabalhar. Então fiz um currículo todo bonitão, imprimi e entreguei por aí. Um dia, tinha uma mensagem na secretária eletrônica para trabalhar na loja do Lino Villaventura. Fiquei lá um ano e foi o meu primeiro contato com pessoas ricas, com a moda. E aí, lembra aquele meu currículo bonitão? Me chamaram para uma série de entrevistas misteriosas. Era para trabalhar na primeira loja da M.A.C no Brasil, em 2002.

Então você começou a maquiar porque tinha que trabalhar?

Sim. Trabalhar na M.A.C foi muito legal, porque eu podia pintar rostos e trocar uma ideia, além de ganhar uma grana com isso. E a abertura da loja foi uma verdadeira comoção, tinha gente que entrava chorando. Foi quando comecei a entender essa relação das pessoas com a beleza. Tipo, eu também gostava de maquiagem, mas chorar por isso? Em seguida, eu fui chamada para fazer SPFW, o que abriu os meus horizontes.

Até então você não tinha trabalhado profissionalmente com beleza. Aprendeu tudo na prática?

Fiz os cursos da M.A.C e, ao longo dos anos, fui fazendo outros. Mas grande parte do que sei eu aprendi fazendo.

Você é, então, uma prova de que maquiagem é questão de prática, né?

Sim, super. As pessoas acham que maquiagem é um passe de mágica, que você nasce com habilidade. Você aprende com prática. Você insiste e vai.

Você acredita em regras de maquiagem?

Tenho várias reservas com regras de maquiagem, você pode fazer o que quiser se você se sente à vontade. Mas há maneiras que você pode entregar aquilo que você fantasiou. Lembro de uma cliente que queria muito o olho preto, mas ela tinha o olho pequeno. Ela saiu da loja com aquela aparência de passarinho. Em todas as entrevistas e aulas de maquiagem que dou falo que você pode jogar todas as regras no lixo, mas deve considerar o que você quer. Qual o efeito que aquilo vai causar. Se você tiver a ciência do efeito e topar, tudo bem. Por exemplo, o meu olho é grande, eu não deveria usar lápis branco na linha d'água, mas foda-se, eu quero deixar o meu olho ainda maior.

De que tendência você prefere manter distância?

Um lance que eu acho febre e pelo qual tenho muitas reservas é a análise cromática, que fala quais as cores que você deve usar. As pessoas descobrem que tem uma paleta e abraçam aquilo de uma forma que começam a evitar, a todo custo, certas tonalidades. Tem cores que animam o meu visual e cores que me deixam mais discretas, mas que eu quero explorar todas as cores e me divertir.

A maquiagem tem se tornado uma expressão cultural? Que movimento é esse?

Está rolando, sim, principalmente com essa geração mais nova. Mas ainda temos um longo caminho pela frente. Enquanto você vê a série "Euphoria" de um lado, do outro tem o "fucking" foxy eyes. As mulheres ainda gostam muito do carimbão com "cut crease", delineador e cílios postiços. Pensa nos casamentos, que além de ser uma instituição superconvencional, mobiliza a galera para se arrumar. Como elas vão maquiadas? O conjunto da obra: o cabelo, a roupa, o salto. É um legado de dor e de padronização do qual as mulheres têm tentado se livrar.

Os tutoriais nas redes sociais seguem mais ou menos essa receitinha também, não?

O Instagram criou essa ideia de maquiagem inalcançável, com muito produto, com cílios postiços. Por causa da internet e dos tutoriais, acabou gerando uma ansiedade nas pessoas de elas ficarem vendo influenciadores fazendo automaquiagem, sendo que tem uma série de truques, de filtros, de jogo de luz. A pessoa vai reproduzir aquilo e não vai dar certo. Automaquiagem é se autoconhecer, explorar seu rosto, suas formas.

E como fugir do que é considerado padrão?

A indústria nos vendeu a maquiagem como linda, mas tem preconceito social, racial. Tem lugar que quer colocar a mulher como mercadoria. A mulher se maquia basicamente para ficar bonita. Agora, tem um movimento de as pessoas se questionarem um pouco mais. A transição capilar, por exemplo, tem rolado com mais força. Mas ainda tem muito trabalho para desconstrução. É um jogo de xadrez, é uma negociação.

Dá para separar a beleza e a maquiagem da imagem de mercadoria?

Quando você usa a maquiagem para se expressar, causa curiosidade e até espanto. Não posso me enganar em dizer que me apresentar em público sem usar uma máscara de cílios não foi uma escolha. As pessoas precisam se dar conta de como elas podem usar a maquiagem de uma maneira discursiva, de informação e até política.

Mostrar que maquiagem não precisa ser futilidade.

Eu tenho uma crise com isso, às vezes acho que isso é uma muleta. Fico me perguntando do quanto preciso de algo. Será que não consigo ir ao supermercado sem um corretivo, que é o item a que sou mais apegada? Na quarentena, eu tenho desapegado disso, agora vou ao supermercado só de protetor solar. Precisa ser possível que possamos viver sem maquiagem, pelo menos para mim. Preciso conseguir me olhar no espelho sem nada e me aceitar. Não posso viver escrava da minha maquiagem 100% do tempo.

Falando em quarentena, como você acha que vai ser a maquiagem no 'novo normal'?

Vai ter um boom com produto para olho, porque vamos ter que usar máscaras por um bom tempo, e os batons que fiquem descansado na gaveta. Espero que tenham um momento em que as pessoas relaxem um pouco em relação ao visual. Não que todo mundo fique largado, mas que o excesso de montação para o outro diminua. Talvez tenha que encontrar um equilíbrio, se montar quando quiser se montar, e sair sem maquiagem quando quiser.

Hoje existe uma valorização forte do "pele boa". Isso é legal? Ou é mais um padrão de beleza que temos que seguir?

É um padrão, mas pelo menos é mais saudável. É claro que o mercado vai usar isso de uma maneira marqueteira, mas pelo menos você vai estar cuidando da sua pele, não manipulando e mudando quem é você na vida. O bem estar é uma tendência muito vendável, então não podemos esquecer que estamos comprando.

Mas isso pode se tornar uma obsessão em parecer mais jovem?

A gente precisa ficar atenta inclusive no discurso que para falar disso. Eu quero, por exemplo, que o colágeno da minha pele continue aqui por todo o tempo tempo possível. Será que eu tenho medo de ficar velha? Talvez sim, mas porque eu fui bombardeada com isso a vida inteira. Ainda assim, a pele saudável pode ser saudável em qualquer idade.