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Maria Ivete Boulos: "Se sair o vírus pega. Se ficar o agressor mata"

A infectologista Maria Ivete Boulos coordena um núcleo de atendimento à vítimas de violência no HC SP e é mãe do político Guilherme Boulos - Arquivo pessoal
A infectologista Maria Ivete Boulos coordena um núcleo de atendimento à vítimas de violência no HC SP e é mãe do político Guilherme Boulos Imagem: Arquivo pessoal

Nina Lemos

24/06/2020 04h00

Além da pandemia do Coronavírus, o Brasil vive um outro surto, esse, mais antigo. Trata-se do que a infectologista Maria Ivete Boulos chama de "epidemia silenciosa de violência contra mulher". Ela que é coordenadora do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Hospital das Clínicas de SP, diz que apesar desse vírus não ser novo, ele tem sido mais perigoso do que nunca. Foi registrado um aumento de 40% nas denúncias de violência contra a mulher feitas ao canal 180. Entre fevereiro e março, o estado de São Paulo registrou um aumento de 51% no número das prisões em flagrante pelo crime.

Em entrevista a Universa, a médica (que é, como mostra o sobrenome, é a orgulhosa mãe do político Guilherme Boulos), fala sobre esse momento difícil com muita esperança. Afinal, ela é do tipo que não desiste. E chama todos à ação para combater não só a violência contra as mulheres, mas muitos outros "vírus" que atingem a sociedade brasileira: como o racismo e a desigualdade social. Leia trechos da entrevista abaixo:

Os casos de violência contra mulher estão aumentando no mundo todo. Que influência a pandemia do Coronavírus tem nisso?

Para as mulheres que já sofriam violência, ficar em casas é um terror. É um risco muito maior para o agravamento de situações pré existentes. A gente tem que lembrar que o vírus não torna ninguém agressor. Mas a situação de confinamento em casa é um gatilho para novos episódios de agressão. Temos o que chamamos de efeito adverso da pandemia. A mulher que fica em casa está protegida do vírus, mas nao da violência. Se sair o vírus pega. Se ficar o agressor mata. Estamos em situação de pandemia de Covid-19, mas temos uma epidemia silenciosa de violência contra a mulher há muito tempo. Isso não acontece só no Brasil, mas no mundo todo.

Como uma mulher pode quebrar o ciclo de violência, ainda mais em tempos de coronavírus?

O ciclo da violência contra a mulher é insidioso e cruel. E é muito fácil falar: "quebre esse vínculo", "vá embora". Por favor, não ponha esse peso maior nas vítimas. A mulher que sofre violência precisa ter ajuda da família, dos vizinhos, de toda a sociedade. Para se empoderar e conseguir sair dessa, ela precisa de creche para os filhos, de suporte, de trabalho. A nossa sociedade sexista e misógina tem casos de mulheres que sofrem violência quando se empoderam e passam a dizer não ao trabalho doméstico exclusivo. São agredidas porque querem sair de casa, trabalhar fora. A mulher quando quer se empoderar é considerada um desafio e corre riscos. O peso não pode ser só dela. A família precisa se educar, precisa ajudar. Porque muitas vezes, quando ela reclama, ouve dos familiares: "ah, mas ele é um bom pai, é um trabalhador, ele paga as contas."

Como médica, como você a flexibilização da quarentena em São Paulo?

É uma situação muito complicada. Principalmente porque quando abriram as lojas, foi como um estouro de boiada. Você viu como a 25 de março ficou lotada? E não foi só lá não, mas também na Oscar Freire, nos shoppings de elite. Os donos das lojas serviram champanhe para as pessoas comemorarem. Mas comemorem o que? Com esses números de mortes? O vírus ainda está aí. A maioria dos hospitais não estão com as UTIs lotadas, mas deveriam esperar também o número de novos casos e de mortes estabilizar e só assim pensar em abrir serviços não essenciais.

Maria Ivete e Guilherme Boulos - Reprodução Twitter - Reprodução Twitter
Infectologista do HC, mãe de Boulos vê flexibilização como "estouro da boiada"
Imagem: Reprodução Twitter

Como a pandemia afeta outras áreas além da saúde, como as que atuam no combate à violência contra a mulher?

No caso do Brasil, a pandemia não encontrou um país que tem um estado que garante os direitos das mulheres, mas um país onde a gente ainda tem que defender aborto em caso de estupro! Uma lei que é de 1940 e que agora querem que acabe! E ainda teve um agravante: vários hospitais foram fechados para só atender casos de coronavírus. Nisso, queriam fechar até o atendimento do Pérola Byington em São Paulo,que é referência no aborto legal, para transformar em lugar de tratamento da Covid-19. Eu entendo que a ideia era aproveitar para que o atendimento à mulher nessa situação fosse interrompido ali para sempre. Além disso, tivemos a fragmentação de vários hospitais e centros de serviços. No Hospital das Clínicas, por exemplo, onde trabalho, a maioria dos pacientes entram pelo pronto-socorro. Fazemos isso há 18 anos. Chegou a epidemia, o prédio inteiro ficou locado para Covid-19, o que dificultou muito com que os casos cheguem até a gente. Estamos falando do centro que é referência para a América Latina. Se aqui houve fragmentação dos atendimentos, imagina nas cidades pequenas, nos lugares remotos do Brasil?

Existem mulheres que foram agredidas pela primeira vez na pandemia?

A maioria dos casos foram exacerbação de casos pela convivência integral com o agressor. Mas não foi só isso. Muitas mulheres acham que não sofrem violência. Enquanto não são agredidas fisicamente, não sabem que estão em um ciclo de violência. Isso começa com a humilhação, com o afastamento dos amigos e da família. Isso se intensifica quando mulheres não saem mais para trabalhar. Por isso também aumentaram os números de divórcio, de pedidos de guardas de filhos e também outra coisa seríssima: as crianças estão assistindo e participando do ciclo de violência da mãe, já que estão sem aulas. Existe também o maior consumo de álcool e a insegurança causada pela crise econômica. Tudo isso leva a um aumento muito grave dos casos, até do feminicídio

A violência contra mulher acontece em todas as classes sociais. Mas nas classes mais baixas ela pode ser pior, pelo fato das mulheres serem mais vulneráveis?

Sim. Vamos ver mais mulheres desempregadas. Mulheres que são arrimo de família perdendo os seus empregos. Nas periferias, a mulher líder de casa é mãe solo. E ainda temos a situação da mulher negra. Muitas mulheres são empregadas domésticas e estão sem trabalho. Tem que ficar em casa, sem trabalho, sem ter onde deixar o filho. E, no caso delas, ainda sofrendo racismo, que também foi exacerbado pela pandemia.

Isso me faz lembrar o caso do menino Miguel. Ele pode ser considerado não só um crime contra uma criança, mas também violência contra a mulher?

Claro. É um ato de desamor imenso. Como uma mulher que é mãe não consegue controlar uma criança por minutos? Como nao consegue pegar distrair enquanto a outra foi passear com um cachorrinho? Imagina se a empregada doméstica fizesse isso com o filho da patroa, o que iria acontecer com ela? E nessa história tem mais: os patrões tiveram Covid-19. A primeira vítima de Covid-19 no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica. A família dos patrões se infectou e não liberou funcionária do serviço. Eles sobreviveram - afinal, têm acesso a bom plano de saúde - mas a empregada não! São raras as pessoas que dispensaram suas empregadas domésticas e seguiram pagando, ou respeitando o isolamento de quem é sua faxineira há anos. O serviço da limpeza, por exemplo, é feito em sua maioria por mulheres pretas. No hospital, no banco, em todos os serviços essenciais. E ninguém fala delas.

Como podemos ajudar a combater a violência contra a mulher nesse momento?

Essas mulheres que têm que ser lembradas que, apesar da pandemia, não estão sozinhas. Estão isoladas, mas não sozinhas. Todas as mulheres têm que ficar alertas. Não só as agredidas. As outras pessoas têm que fazer seu papel de acolher e denunciar. Se você ouve um caso de violência acontecendo com uma vizinha, não pode ficar indiferente. No momento que você escutou ou viu um caso, ele passa a ser sua responsabilidade também. Se alguém te pedir socorro, não se omita! Meta a colher, bata a colher, se meta!

E como uma mulher vítima de violência pode se defender no contexto da pandemia?

Mulheres que estão em home office são instruídas a tentar mostrar sinais durante reuniões de vídeo, por exemplo. Como mostrar a palma da mão, sinais que significam pedido de socorro. Quem não está trabalhando em casa pode, por exemplo, se precisar ir ao banco, à farmácia, pedir socorro nesses lugares. Diga o que está acontecendo. Peça ajuda. Uma outra coisa que pode ser feita é ligar para o 0800 e falar: "eu quero uma pizza". Isso é um sinal que vai ser entendido. Eles vão perguntar: "onde você quer que eu entregue a pizza?" Assim a polícia chega. Também é importante saber qual é sua rota de fuga. Mantenha uma bolsa com os seus documentos e tenha uma referência de família ou amigos para onde pode correr com seus filhos. Depois disso, procure casas abrigos e Delegacias da Mulher. Elas estão funcionando e têm dado prioridade aos boletim de ocorrência que são feitos online.

Mesmo nesse momento difícil, você ainda tem esperança que as coisas melhores, inclusive no caso dos direitos das mulheres?

Não posso perder a esperança.. A nossa "esperança equilibrista" ainda continua lá. Não podemos nunca perder, inclusive porque em algumas situações isso é o que nos resta. Temos que ter esperança mas também cumprir nossos papeis. A sociedade toda tem que mudar, sem medo de mostrar que não é a favor de tudo que está no lugar dos outros, mostrar que tem compaixão. Tem uma frase do Eduardo Galeano que eu gosto muito: "em tempos obscuros, temos que ser suficientemente desobedientes quando recebemos ordens contraditórias." Então, vamos continuar sendo desobedientes.