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Ela criou dependência financeira do ex e, aos 55 anos, tenta se reerguer

Niolanda Dantas conta que está saindo de um relacionamento abusivo de 20 anos - Arquivo pessoal
Niolanda Dantas conta que está saindo de um relacionamento abusivo de 20 anos Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

13/02/2020 04h00

Niolanda Dantas, de 55 anos, casou-se aos 17, teve dois filhos, sofreu abuso emocional e, após 15 anos de relacionamento, decidiu não mais continuar sendo vítima. Separou-se, conquistou um emprego num renomado hospital em São Paulo e uniu-se novamente por 20 anos, mas, segundo ela, viveu novo abuso — desta vez financeiro —, além de violência física.

Durante essas duas décadas, a administradora hospitalar relata ainda que teve câncer, tentou tirar a própria vida, precisou ser internada em clínica psiquiátrica e hoje mora de favor na casa de uma amiga, tentando recomeçar do zero após ser afastada da empresa onde trabalhava com o marido, um médico.

Em processo de divórcio com o renomado profissional, de quem ela pede para ocultar a identidade, Niolanda conta como vem conseguindo dar a volta por cima: "A mulher tem sempre que buscar a sua independência financeira. E gritar mediante qualquer abuso", acredita. Segue seu relato:

"Trabalhei por seis anos no Hospital das Clínicas, atuando na área de transplante de medula, cuidando dos prontuários. Mas fui convidada para ir para a empresa desse homem, que depois se tornaria meu marido, para ganhar cinco vezes mais. A instituição era pequena, com 150 funcionários, e hoje é uma holding.

Foi esse meu atual marido, de quem estou em processo de divórcio há seis meses, que me entrevistou. Ele me encheu os olhos com as possibilidades na carreira, porque no HC não tinha mais como crescer.

Ele era um cara muito temido, pelo jeito bravo, mas me tratava muito bem. Ficamos próximos depois de um ano trabalhando juntos, mas nunca me cantou ou fez insinuações. E fui me encantando com sua delicadeza. Ele é 20 anos mais velho do que eu.

Quando nos conhecemos, ele morava sob o mesmo teto que a mãe de seus três filhos, mas dizia que eles não mais eram um casal e dormiam em quartos separados.

Era março de 1999 quando ele se declarou para mim. 'Queria dizer que estou amando você', ele disse. Conversamos por três horas e em nenhum momento me tocou. Foi lindo e delicado. Fiquei lisonjeada com o fato de um homem do perfil dele, de posição importante, gostar de mim, que no início era sua secretária.

Após esse episódio, ficamos um mês sem nos encontrarmos. Ele viaja demais. Até que um dia me presenteou com um anel. E começamos a namorar.

Ele acelerou o divórcio enquanto a minha separação estava fluindo também. Logo no início da nossa relação, ele imediatamente abraçou meus filhos, na época com 8 e 12 anos. Pagou colégio, tudo. O pai deles nunca deu pensão, nem foi presente.

Também me colocou na diretoria da empresa, e fomos ali construindo nossas coisas, como uma casa numa chácara. Eu era o seu braço direito e esquerdo.

Casamento em casas separadas

Nos casamos em 2006, numa cerimônia bacana, intimista, numa casa dos anos 30. Cuidei de tudo sozinha. Mas não fomos morar juntos num primeiro momento. Ele seguiu na casa onde ficava com os filhos. A essa altura, a ex já tinha saído de lá. E achei normal.

Na verdade, ele apenas ditava as regras na relação, e fui me submetendo. Valia o carinho que ele tinha comigo e o amor que sentia por ele. Olhava para a gente e não acreditava que estava vivendo aquilo. Meu outro casamento foi muito ruim, e aquele era um conto de fadas.

Ele me enaltecia. Me sentia muito importante no lado dele. Então relevava outras coisas.

Nós fomos morar juntos mesmo em 2011, quando os filhos dele se casaram. Ficamos no apartamento que montamos, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.

Eu não podia discordar dele, por exemplo. E, quando eu queria fazer algo que ele não gostava, dizia frases do tipo: 'Não precisa ninguém te empurrar no buraco, porque você mesma cai'. Ou ainda: 'Quem paga manda!'. E então não me dava mais atenção, passava dias calado. Isso doía. Parecia que não queria ver o meu sucesso.

A briga e a doença

A filha dele começou a trabalhar conosco em 2008, na administração. E sentia que aos poucos eu era colocada de lado. Participava de menos reuniões que antes. E ele falava pontualmente comigo. Isso começou a me deprimir.

As discussões tornaram-se constantes, e ele sempre ameaçava me tirar algo se eu continuasse discordando dele, como me afastar ainda mais das atividades da empresa. A essa altura, meus dois filhos e a minha nora já trabalhavam ali também. E meus pais tinham o plano de saúde pago por ele. Eles estão com 83 anos, e minha mãe tem Alzheimer, está em estado vegetativo há 10 anos. Minha família teve uma dependência financeira muito grande dele.

Em fevereiro de 2017, passamos o Carnaval em Recife e lembro que ele não parava de mexer no celular. Peguei o aparelho e li dezenas de mensagens trocadas com uma pessoa com quem se relacionou no passado. Ali, entre outras coisas, escreveu que estava infeliz, que tinha lembranças bacanas de quando eles se encontravam e ainda mandou para ela uma música que escolhemos para o nosso casamento.

Entrei em pânico e, quando o confrontei, ele disse que a atitude dele era normal. Falou que se tratava apenas de uma amiga e ainda ficou furioso porque peguei o celular. Me chamou de maluca e descompensada. Aquilo me doeu tanto que no dia seguinte amanheci e quebrei a casa toda. E cantando a música que ele mandou pra ela.

Ele me jogou na cama, pegou na minha garganta e apertou muito. Eu alcancei uma tesoura e tentei me ferir, porque queria morrer. Depois, me tranquei no banheiro e tentei me matar.

Quando me viu ferida, ele chamou um médico, pediu que meus filhos fossem ao meu encontro, porque, nas palavras dele, eu estava louca, e foi embora para São Paulo. Fiquei 15 dias internada, e me afastei da empresa, me tratando com psiquiatra, tomando dez medicações. Perdi uns 10 quilos. Eu só chorava, e ele não mais se comunicava comigo.

Nesse mesmo período, descobri que estava com câncer no rim. Tive que tirar uma parte dele, mas não precisei fazer quimioterapia. Nos reencontramos, conversamos e resolvemos voltar a ficar juntos.

Retornei de licença do trabalho apenas em agosto, mas quando cheguei na empresa a nossa sala não era mais a mesma, como foi desde o início. E ele havia me tirado da administração e me colocado na comunicação. Também não pude mais ter acesso a sua agenda. Comecei a chorar ali mesmo. Estava frágil, ainda medicada.

Tinha um bom salário, de R$ 36 mil. E minha vida estava ali. Por isso escolhi tentar. E comecei a desenvolver vários projetos sociais para a instituição, como eventos voltados para a mulher com câncer, com apoiadores, empresas abraçando a causa.

Mas ele não gostou e começou a reclamar dos meus encontros com empresários. Durante uma viagem, em que me reuni com um possível patrocinador, ele me ligou me esculhambando, e disse que ia sair de casa e reavaliar a nossa relação. Insinuou que eu estava tendo um caso e espalhou isso.

Segui trabalhando, mas ninguém falava mais comigo. Em agosto de 2019 ele saiu de casa. Em dezembro me exoneraram. Tiraram ainda meus filhos e minha nora da empresa, e mais de 10 pessoas ligadas a mim. Minha filha estava grávida de gêmeos. Hoje eles passam necessidade.

Dependência financeira

Ele custeava toda a casa, nossos gastos. Com o pedido de divórcio, saí do nosso apartamento e estou de favor na casa de uma amiga, na Vila Madalena. Ainda preciso fazer exames periódicos a cada seis meses por causa do câncer. Mas não posso mais bancar.

O que temos são bens em condomínio, ou seja, um não pode fazer nada sem o outro. Não guardei nada. Eu me sentia tão dependente dele que nunca pensei em ter nada só meu. O dinheiro que ganhava eu gastava nas nossas festinhas, jantares de família e em coisas para dentro de casa, além de viagens. Também ajudava pessoas, meus pais. Era muito envolvida em causas sociais. Nada sobrou.

A verdade é que não me precavi. Hoje estou tentando primeiro ficar em pé, recomeçar do zero. Estou tentando trabalhar com decoração, mas ainda não ganhei nada.

Tenho muitos talentos e me deixei ser julgada por ele. Estava numa zona de conforto. Idealizei a instituição com ele, que era pequena e hoje é um grupo de cinco grandes empresas, com mais de mil colaboradores, e atua em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador e Recife. Não imaginei que isso iria acabar.

Aprendi que você tem que buscar o seu universo. Eu confiei, deveria ter caído fora desse relacionamento abusivo há muito tempo. E quando reconheci que estava dentro de um, deveria ter gritado.

Mas a gente vem ainda de uma educação machista, e aprende, de forma errada, que quando o homem tem uma condição financeira melhor do que a da mulher, ela releva muita coisa para não discutir. E eu ainda vinha de outro casamento que não deu certo. Eu queria que esse continuasse. Eu realmente o amei. Agora, é me reerguer."

O outro lado

A matéria foi atualizada em 14/02, às 13h

Procurado, o profissional mencionado por Niolanda disse, através de sua advogada, que não irá se manifestar.