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"Rodei 70 mil quilômetros por sete países, sozinha, pilotando uma moto"

Deisi Nerwesk encara o litoral chileno, entre os Andes e o oceano Pacífico - Deisi Nerwesk / Arquivo pessoal
Deisi Nerwesk encara o litoral chileno, entre os Andes e o oceano Pacífico Imagem: Deisi Nerwesk / Arquivo pessoal

Vanessa Fajardo

Colaboração para Universa

23/08/2019 04h00

Cabelos longos e vermelhos, tatuagem e a paixão por motos são marcas registradas de Deisi Nerwesk, de 31 anos, moradora de Fraiburgo, uma pequena cidade de Santa Catarina. Formada técnica de eletromecânica, ela já trabalhou em oficinas fazendo manutenção com caixa de ferramentas e muita graxa nas mãos, enfrentou muitas situações de machismo, venceu a ideia de que garotas só andam de moto se for na garupa e hoje viaja pela América Latina pilotando sua Harley Davidson de 1.600 cilindradas. Confira, abaixo, seu relato completo:

"Sempre gostei de máquinas e motores. Aos 10 anos, já sabia que queria uma moto. Cresci em uma família com três meninos, brincava do que eles brincavam. Nunca gostei de bonecas. Aos 17, entrei em um curso técnico de eletromecânica. Era a única menina da sala, mas para mim aquilo era natural.

Com 18 anos tive meu primeiro emprego como mecânica a diesel. Aos 20, quando comecei a trabalhar com mecânica industrial, descobri o que era machismo. Antes da minha entrada, os meninos se organizavam no final do turno para limpar a oficina. Depois que cheguei, só eu fazia isso. Na primeira conversa que tive com meu chefe, ele não perguntou minha experiência profissional ou meus objetivos: a única coisa que ele disse foi que, se eu ficasse de rolo com algum dos funcionários, seríamos ambos demitidos.

Hoje trabalho como planejadora de manutenção de uma empresa, crio os planos de manutenção, respondo por auditorias. E viajo de moto em todas as férias. Em sete anos já rodei mais de 70 mil quilômetros. Visitei sete países. Além do Brasil, já fui para Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile, Peru e Bolívia. Por aqui já rodei bastante pelo Sul e Sudeste, mas ainda quero ir para o Nordeste.

Minha primeira viagem internacional foi para o Deserto do Atacama, no Chile. Foram 14 dias viajando sozinha. Foi uma mistura de medo, paixão e sensação de liberdade. Nunca me senti tão livre. Estava de férias, tinha tempo e fui indo. Estava em Salta, nos pés dos Andes, quando me toquei como estava longe de casa. É uma satisfação enorme. Sinto uma paz gigantesca ao rodar tantos dias pela estrada. Toda vez que olho para os Andes, eu choro.

Para as pessoas, é sempre uma surpresa quando tiro o capacete. Uma vez pedi para uma 'guria' fazer uma foto minha: quando tirei meu capacete, ela me abraçou. Quando a polícia me para também é sempre engraçado. É comum ouvir coisas do tipo: 'não é possível!' Ou, 'não pode ser verdade'. Para mim, andar de moto é mais do que um hobby. Foi a forma com que aprendi a lidar comigo mesma, é adrenalina, paixão. Aprendi a gostar da minha própria companhia e me tornei mais humana. Vi paisagens lindas, mas também muita pobreza.

Hipotermia em Ushuaia

Antes de viajar faço um planejamento. Costumo rodar de 500 a 600 quilômetros por dia, mas já aconteceu de rodar 1.200 quilômetros num dia só; depende muito das condições climáticas. Fico cada dia num lugar e nunca reservo hotel. A estrada é imprevisível.

Acontece que é bem comum mudar o roteiro duas, três vezes ao dia. Às vezes sinto medo e passo por uns imprevistos. Como a vez em que estava indo para Ushuaia. Tinha me perdido e estava fora do meu horário. Sabia que ia anoitecer na estrada e isso não era bom, porque lá é muito frio.

Peguei cinco dias de temporal na Patagônia, estava chovendo muito e comecei a ficar fraca, fazia cinco graus negativos. Houve um momento em que travei em cima da moto, não conseguia mais me mexer, tudo doía, fiquei parada na estrada. Um caminhoneiro viu e parou para me ajudar, me colocou dentro do caminhão, carregou a moto e me deixou num hotel. Tomei um banho quente e consegui me recuperar.

Gelo no Peru

Outra história marcante aconteceu tem pouco tempo, uns seis meses. Peguei uma tempestade a quase 5 mil metros de altitude na rota 38, no Peru. Me falaram que tinha uma estrada bonita a percorrer, que quase não havia caminhões ali, e saí fora do meu roteiro.

Realmente as paisagens eram lindas, mas as curvas eram muito fechadas. Começou a chover forte, formou-se uma camada de gelo em cima da pista. Minha moto pesa mais de 400 quilos e não estava conseguindo segurá-la. Além de tudo, estava com muita dor de cabeça por causa da altitude. Um casal boliviano me socorreu e foi me acompanhando, até que eu chegasse em Desaguadero [na fronteira entre a Bolívia e o Peru].

A motoqueira Deisi Nerwesk, no Salar de Uyuni, na Bolívia - Deisi Nerwesk / Arquivo pessoal - Deisi Nerwesk / Arquivo pessoal
A motoqueira Deisi Nerwesk, no Salar de Uyuni, na Bolívia
Imagem: Deisi Nerwesk / Arquivo pessoal

A estrada é um lugar imprevisível, mas também cheia de boas surpresas. Quando a gente se perde, acaba topando com as melhores paisagens. Também já fiz muitas amizades em viagens. Depois de cinco, seis, sete dias viajando sozinha sem falar com ninguém, quando você chega ao hotel, o recepcionista vira seu melhor amigo. Quem anda de moto já tem esse código.

Às vezes sinto medo, sim, mas a vontade de conhecer os lugares é maior. Minha mãe é minha maior inspiração, a maior feminista que conheci até hoje. Ela se preocupa, mas sempre me incentivou, das viagens de moto até os empregos como mecânica. Ela me ajuda a arrumar a bagagem, coloca comida. Meu pai também se preocupa, mas eles sempre me deram muita liberdade. Sem eles eu não seria nada do que sou hoje."