'Escolher o parto natural contrariava gerações de pretas da minha família'

"Engravidei sem planejar, após uma crise de quase um ano no casamento. Hoje estamos nos divorciando. E a gravidez nos pegou de surpresa, porque os nossos planos eram esperar alguns anos para ter o primeiro filho. No início, não fiquei empolgada: só conseguia pensar nas coisas negativas que a gravidez me traria. Não queria contar pra ninguém sobre a gestação, tinha receio da empolgação das pessoas com a notícia.

Passei as primeiras semanas mergulhada na culpa de ter engravidado no meio de uma relação em crise e tive medo de o bebê não nascer saudável, de não ter condições financeiras para criar uma criança, do parto, de ter que adiar os meus planos de estudos, da volta da licença de maternidade, de ser demitida e medo do racismo que a minha criança preta passaria a vida toda.

Foram dias angustiada com a cabeça cheia desses pensamentos, o que me deixou muito ansiosa. O meu ex-companheiro, diferentemente de mim, ficou bem alegre e feliz com a gestação. Comecei, então, a pesquisar, ler e buscar informações. As mulheres ao meu redor não contavam boas experiências de parto e gravidez, mas eu soube que teria uma menina, fiquei feliz e comecei a me empolgar com a ideia. Escolhemos o nome da nossa bebê, que se chamaria Anayá, nome de origem nigeriana que significa 'olhar para Deus ou Deusa'.

Comecei um plano de ação sobre o que eu gostaria de experienciar na minha gestação e parto. O objetivo era ter um parto o mais natural possível e um nascimento humanizado para a Anayá. As metas eram simples: fazer o pré-natal com profissionais respeitosos; exercitar o meu corpo para seguir com a gestação com saúde; ter uma doula, pra me dar suporte psicológico e emocional, durante o período de gravidez, parto e pós-parto; ter um parto vaginal, ter a minha bebê comigo nas primeiras horas de vida dela; achar uma maternidade, que atendesse meu plano de saúde e que respeitasse meu planejamento.

Fazia exercícios em casa com bola de pilates e comecei o ioga, quando tive tempo pra ouvir meu corpo, entender melhor o meu processo e aceitar a gestação. Ali, me sentia mais calma, centrada e menos ansiosa. Recebi indicações sobre o trabalho de uma doula e encontrei Giulia Ventriglia, que é uma artista, dançarina e instrutora de ioga. Ela me apoiou, aconselhou e me guiou nos últimos meses de gestação, ouvindo sobre minha crise de casamento, meus anseios.

Bruna optou por parto natural e foi até o fim de sua decisão
Bruna optou por parto natural e foi até o fim de sua decisão Imagem: Acervo pessoal

Me senti diversas vezes desencorajada por familiares, amigos e médicos sobre as minhas escolhas e escutava que não poderia parir por ser magra. Diziam que eu não teria forças e nem coragem para passar por um parto vaginal sem anestesia. Me informei o suficiente pra entender que não era verdade, mas ficava com mais medo de não conseguir. Eu buscava ter as minhas escolhas respeitadas mas, além disso, eu mudaria a história das mulheres pretas como eu, que são maioria em casos violência obstétrica, sofrimento e traumas na hora do parto. As minhas escolhas contrariavam gerações de mulheres pretas da minha família, que engravidaram e tiveram seus bebês em circunstâncias de violências contras seus corpos. Queria que fosse diferente, com respeito, amor, cuidado e atenção como tem que ser feito.

O final da minha gravidez foi a fase mais tensa. Com 37 semanas, tive alguns desentendimentos com meu ex-companheiro. As discussões e a soma de uma alimentação desbalanceada fizeram minha pressão arterial subir e tive pré-eclâmpsia. Meu ex-companheiro me acompanhou todo o tempo, mesmo com os desentendimentos. Dei entrada na maternidade e precisei ser internada e os plantonistas quiseram me convencer a fazer uma cesariana. Insistimos para que a maternidade seguisse com meu planejamento: eu tinha tudo documentado em mãos, mas depois de 12 horas de internação, não tinha sido medicada. Anayá estava bem, mas minha pressão arterial continuava mais alta que o normal. No dia seguinte, optamos pela indução do parto normal, com um dispositivo inserido direto no colo do útero que ajuda a estimular contrações.

Me internaram em um quarto individual, onde me alimentei e recebi visitas dos avós da minha filha. Poder receber minha família nesse momento de tensão foi muito importante para eu conseguir seguir calma e confiante. Três horas depois, as dores começaram e começamos a cronometrar as contrações. Parecia uma cólica menstrual que pegava toda região do abdômen, das costas e quadril e se intensificava a cada hora que passava.

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O pai do bebê seguia me dando apoio, conversando com as enfermeiras e médicas. A doula fez massagem e aromaterapia, ouvimos as músicas de uma playlist criada para a Anayá. Me sentia segura, mas ainda com muito medo das horas seguintes. Às 22h, as dores se intensificaram e a médica e enfermeiras a todo tempo faziam o cardiotoco e me examinavam. Anayá estava fora de risco e eu já estava em trabalho de parto. A dilatação demorou, mas as dores estavam muito fortes. Eu não sabia quem eu era e o que eu queria, chorava e dizia que não conseguiria, várias vezes. Falava que seria melhor parar, chamar a médica, porque eu não aguentava mais de dor e queria desistir. Queria desistir do sonho de parir porque, naquele momento, eu acreditei que não era capaz.

A doula, com toda paciência do mundo, conversou comigo, disse que eu estava indo muito bem e que eu iria conseguir. Todo tempo tocava minha barriga, lombar e quadril e dizia que tinha certeza de que a Anayá estava nascendo. Minha pressão arterial estava controlada e atingi mais de seis dedos de dilatação. Na sala de parto, fui para a banheira, mas não conseguia relaxar, as contrações chegavam uma atrás da outra. Quando voltei para a cama, cansada e com dor, estava com dilatação completa. Optei por não tomar anestesia e ela poderia nascer a qualquer momento. Quase às 3h da manhã, entrei no expulsivo. Ela nasceu às 3h18, veio direto para o meu colo e tinha o nariz do pai dela. Chorou desde o primeiro minuto de vida e eu segurei forte aquela bebezinha úmida — parecia que toda dor tinha desaparecido. Foi intenso, doloroso e demorado, em 12 horas de trabalho de parto, mas tive cuidado e respeito às minhas decisões e escolhas.

Segurar a Anayá pela primeira vez encheu meu coração de felicidade e êxtase. Giulia disse que eu não deveria mais duvidar de mim mesma, que eu pari e poderia realizar qualquer coisa: ter uma mulher me apoiando, atenta às minhas dores e necessidades me fez muito bem em todo aquele processo do parto.

Anayá estava saudável, com 49 cm e 3.280kg, fez os exames menos invasivos e veio direto para o meu colo. Mamou por uma hora ou mais depois de nascer na calma e respeito que ela merecia. Senti o cuidado e o amor por aquele momento, e os olhos do pai dela brilhando ao olhar pra nossa filha.

Recebemos alta da maternidade no dia em que o Brasil decretou lockdown devido à pandemia. Refletindo alguns dias depois, percebi que se eu não tivesse tido problemas com a minha pressão arterial, não teria induzido o parto e as minhas possibilidades com a pandemia mudariam completamente. Hoje, ela é uma criança saudável, inteligente, linda e muito comunicativa."

Bruna Oliveira, 32 anos, analista financeira e empreendedora, mãe da Anayá, de 4 anos

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