Natalia Timerman

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Opinião

Se encontrar sua psiquiatra no bloquinho: sorrir, cumprimentar ou fugir?

Ela está ali, na sua frente, fantasiada, provavelmente bêbada: a pessoa que sabe de boa parte dos seus segredos. Do vasto catálogo das possibilidades, três reações se apresentam a você: ostentar o seu melhor sorriso malandro e assim instaurar alguma cumplicidade carnavalesca; fingir normalidade; fugir. Você hesita, e de repente ela já passou (a paralisia, afinal, também é uma reação).

Sua psiquiatra seguiu com o bloco. Sua psiquiatra: a pessoa que te conhece por meio da palavra e do olhar; que quase não fala de si, justamente ela agora está ali, de meia arrastão, como que escancarando os próprios segredos no entoar do coro. Mas talvez os segredos dela sejam, no limite, parecidos com os seus: as dores primordiais que sustentam o grito da euforia da festa. Também ela dança, também ela chora, também ela tem dias bons e ruins.

Também ela hesita, se deixa transformar pelo encontro, anseia; também ela é feita de corpo. O corpo: real, imediato, escancarado, mesmo que fantasiado (principalmente fantasiado); enquanto a palavra de que vocês se munem no consultório é sempre uma mediação, um pacto, uma ficção.

Se sua psiquiatra for também escritora, haverá uma lente de aumento em um dilema que vocês já precisariam enfrentar tanto no encontro de vocês, quanto individualmente, um dilema crucial e onipresente nesse tempo que escorre pelas telas.

O que é público, o que é privado, o que é íntimo? Que palavra faz ponte sem profanar o espaço do outro? O que dizer, o que calar, o que mostrar e esconder? O que se mostra quando se esconde, o que se esconde quando se mostra —e qual é, afinal, a diferença?

Diferença, seja qual for, que o Carnaval sublinha. No Carnaval se mostra o que em geral se esconde; ali na rua se deixa escoar o que costuma ficar represado, no que é a contradição do Carnaval, ao mesmo tempo tradição e revolução. Mas Carnaval é o esguicho que possibilitará contenção ou a epifania, enfim, da junção entre o concreto e o simbólico? Ambos, talvez.

O Carnaval expõe, o Carnaval esbanja, e esbanja encontros. Entre pessoas de origens distintas, entre pessoas do mesmo em outros contextos. Alguns pelos quais você ansiava, outros que nunca poderia imaginar, também os que você evitaria a qualquer custo (como esse, talvez, com sua psiquiatra). Mas o Carnaval esbanja tanto que um encontro pode não significar nada além de si mesmo, duas pessoas que se veem e que passam.

No átimo em que se vira, sem planejar, para buscar com o olhar onde está sua psiquiatra, você se lembra da sala do consultório, do lugar no qual você e ela, ao longo do tempo, acompanham as tantas variações e movimentos entre o que se mostra da sua vida e o que se esconde; onde ela acompanha os seus gestos, seus sintomas, tenta distinguir um do outro. Ela tenta cuidar, com você, de você mesmo. Mas não agora.

Agora ela já está ali adiante, com os braços levantados, cantando a mesma música que você.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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