Natalia Timerman

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Opinião

Ansiedade climática: como lidar com os sentimentos que nos cabem agora

Julia Dantas é escritora e sua casa foi uma das centenas de milhares de casas alagadas no Rio Grande do Sul. Empresto suas palavras para dizer o que aconteceu, o que está acontecendo. "Se algum dia eu virar cineasta e fizer um filme de terror, essa cena estará lá: a água brota por entre as junções do piso de madeira em manchas escuras mínimas que rapidamente ganham tamanho e se espalham indiferentes aos panos e às folhas de jornal com as quais se tenta suprimi-las. Outra cena: a água começa a atravessar por baixo a parede compartilhada com a vizinha e a parede que nos separa da rua, e, pela primeira vez na vida, a mocinha do filme se pergunta o quão sólida costuma ser uma parede. Ela pensa que o apartamento desocupado da vizinha deve ter virado uma piscina e não quer acreditar que o seu vai ser o próximo. Horas depois, a mocinha pensa também na ingenuidade dos panos, das folhas de jornal, da barreira que tentou segurar meio metro de água. São pensamentos demais para um filme de terror, eu sei, eu não disse que seria um filme bom."

Quando eu era criança, tinha um pesadelo recorrente: ondas gigantes tomavam as ruas do Guarujá, chegavam até o apartamento onde passávamos as férias. Eu acordava assustada, olhava ao redor, o piso seco, minha irmã respirando calma na cama ao lado, o alívio. Vejo na internet os vídeos das ondas no meio da cidade de Porto Alegre, dentro das casas: é horrível — eu imagino, eu não imagino — não poder acordar, não poder acordar porque o pesadelo é a realidade.

Tenho olhado para o meu quarto e imaginado a mesa boiando, meus documentos se desfazendo, a memória do meu computador e cada uma das minhas roupas se esfacelando. Tento viver normalmente, mas não consigo. Penso como seria se as fotos que juntei ao longo da vida se desfizessem em água, cada uma das cartas, os livros grifados, os diários da infância.

Tudo estava previsto e anunciado, mas é diferente quando acontece, quando há rosto, quando vemos o desespero que assombra alguém que perdeu tudo ou perdeu alguém nessa catástrofe climática, política, devastadora. Já vinha acontecendo em vários lugares do Brasil, como um revezamento do horror, já havia acontecido há poucos meses no mesmo Rio Grande do Sul, mas agora o rio permanece cheio, a água continua gritando a verdade, nossa memória sempre curta tem mais dificuldade de esquecer.

Não é aqui, mas é aqui. É agora e vai ser no futuro. É como se o Brasil fosse um corpo e no pé houvesse uma fratura exposta, uma gangrena, é lá que dói, mas o corpo dói inteiro, o corpo inteiro sente a dor. A metáfora é horrível. Não encontro outro jeito de dizer.

Recorro de novo a Julia Dantas: "É uma imagem difícil de explicar. Penso nos vídeos bonitos de pequenas nascentes de água no meio do verde da natureza. Um vital presente da terra para a vida na superfície. Exceto que foi todo o contrário. Um pequeno nascedouro de horror no piso da sala, depois no quarto ao lado da cama, depois nem sabemos mais. Eu não tenho repertório imagético para isso."

Como seguir a vida imaginando minhas coisas debaixo d'água? Como seguir a vida normalmente sabendo que há cidades inteiras praticamente debaixo d'água?

(A água é fétida por conta de animais mortos e esgoto, descreve uma paciente cuja família inteira vive em Canoas. A minha cidade praticamente deixou de existir, ela diz. Às 4 da manhã a água estava na coxa, a irmã voltou para pegar o gato e a água estava no pescoço, não deu tempo de tirar as coisas.)

"Uma obsessão coletiva, fanática e exagerada" seria a única maneira de chegarmos a uma ação preventiva oportuna". Sigrid Nuñez coloca essa frase na boca de um personagem odiável em "O que você está enfrentando" (editora Instante, tradução de Carla Fortino), e hoje é difícil discordar dele. Outra personagem responde que ele não tem o direito de nos tirar a esperança.

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É um desafio encontrar a medida diante das consequências de um modo de vida desmedido. O que se chama de ansiedade climática pode ser racional e adaptativo para algumas pessoas, mas para outras, perturbador e paralisante, afirma a psicóloga comportamental Lucia Tecuta.

Como psiquiatra, consigo dizer, para quem não foi diretamente afetado por eventos climáticos extremos, que a impossibilidade de pensar em outra coisa, de comer, de dormir, junto de paroxismos de ansiedade como, por exemplo, a sensação de palpitação ou de dificuldade de respirar, podem significar que você precisa procurar ajuda psiquiátrica ou psicológica. Consigo dizer também que se sentir ansioso diante das perspectivas climáticas é o que nos cabe agora, assim como sentir-se triste (a imagem de um cachorro nadando depois de ter sido tirado da água). Consigo dizer que nomear os próprios sentimentos e acolhê-los ajuda.

Ajuda também saber que há muito a ser feito. Ajuda ajudar, tanto no imediato quanto para o depois. Ajuda comemorar as boas notícias, como a aprovação no Senado do projeto de lei 4.129/2021 para que o Brasil se adapte às mudanças climáticas. A jornalista Mariana Belmont reafirma que "o desastre é parte consciente do projeto político de governos negacionistas ou incapazes de se preocupar com a vida das pessoas e das florestas, afinal elas são indissociáveis. Os desastres são fruto de escolhas humanas e de processos políticos de poder." (Ajuda lembrar que Flavio Bolsonaro foi o único que votou contra o projeto.)

Não consigo mais do que recolher fragmentos, começar a pensar, elaborar o que para mim é o eco de um luto, mas para quem vive ou viveu ou tem parentes no RS, é um luto propriamente dito.

"Apesar de todo o caos e também por causa dele, o mundo ainda é um lugar de maravilhamento, e só podemos esperar que encontremos maneiras de continuar nele pelo menos um pouco mais", diz o psicanalista Joseph Dodds.

O escritor e analista ambiental Pablo L. C. Casella me diz que, para continuar atuante, engajado, crente, tem se escorado nos princípios dos cuidados paliativos. A biodiversidade, o planeta, a Natureza, diz ele, é como um paciente em cuidados paliativos. Há muito o que se fazer então, e o que se faz pode ser definidor.

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Ele havia mandado uma mensagem me contando tudo isso, e o aplicativo por onde ela chegou me mostrava um trecho que terminava em "Aleg…"

Era alegoria a palavra que ele havia escrito, mas eu li alegria. A alegria pode até ser um erro, mas precisamos dela como nunca.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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