Natalia Timerman

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Opinião

Anatomia da queda masculina: não sabemos que homem queremos para o futuro

Eu, que sempre escrevo em silêncio, ou que prefiro escrever em silêncio mas escrevo como dá, opto por teclar estas palavras ouvindo repetidamente a versão instrumental de "P.I.M.P." nos fones de ouvido, enquanto meus filhos veem TV atrás de mim. Quem já viu o perturbador e magnético "Anatomia de uma Queda" sabe de que música estou falando: aquela que aparece já no início, durante a entrevista que a escritora Sandra tenta conceder a uma jornalista. A música soa agradável por alguns instantes mas logo vira um transtorno, a ponto de impedir o curso da conversa. As variações do significado da canção parecem acompanhar outras que sustentam o filme: uma mesma música, uma mesma situação, dependendo do contexto — ou de como se interpreta esse contexto — pode ser prosaica, desconcertante ou até macabra.

Um homem cai da janela de casa, e sua mulher passa a ser suspeita de tê-lo matado. Este é o enredo, que perpassa inúmeras nuances, e o filme acaba sendo muito mais. A mulher é uma escritora reconhecida; ele, um escritor fracassado. As discussões que travam não diferem muito das de um casal que precisa compartilhar as responsabilidades da casa e dos filhos: quem fez mais, de quem é a culpa quando alguém não consegue dar conta de trabalhar ou realizar seus sonhos, de quem é a culpa quando o outro é infeliz.

Parte da perturbação e do magnetismo do filme se devem justamente ao fato de que a trivialidade remete às nossas próprias vidas. É como se, na vida cotidiana, por trás de cada banalidade pudesse haver uma tragédia. Diante da suspeita de um crime, o passado muda, cada atitude e cada palavra ganha outro significado, e cada significado é em si instável, provisório: a vida como era passa a ser inteira outra, revestida de augúrios, como se parte de um enredo do qual antes não se podia ter notícia, e que continua inacessível como verdade definitiva depois.

A vida como enredo: mais uma camada de complexidade é acrescida à trama, pois Sandra, em interpretação impressionante de Sandra Hüller (e aqui a coincidência de nomes reforça essa camada, assim como a nacionalidade alemã da atriz, que coincide com a da personagem), escreve ficção a partir da própria vida. No tribunal, a acusação tenta usar um trecho de um livro ficcional de sua autoria como prova da possibilidade ou mesmo da intenção de Sandra em matar Samuel, o marido, o que soa tão absurdo quanto possível em nossos dias.

Samuel, interpretado por Samuel Theis, pouco aparece. Pelo motivo óbvio de que morre, mas também porque "Anatomia de uma Queda" não é um filme sobre ele, mas sobre sua queda. Sobre a queda masculina, talvez, e também sobre as mulheres e o incômodo que pode recair sobre o seu sucesso ou suas escolhas, quando a mudança do paradigma de papéis ainda suscita desconfortos.

Não queremos o homem do passado, mas ainda não sabemos exatamente que tipo de homem queremos para o futuro. E, enquanto isso, sobra culpa, sobram impasses, e as vitórias não conseguem esconder outras derrotas. Há quedas, afinal, em que todos saem perdendo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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