Suicídio: aos que ficam, a dor e a perplexidade não passam
Quando me chega a notícia de uma morte por suicídio, inevitavelmente me coloco a pensar. Penso na pessoa que morreu e nos seus amigos, pais, irmãos e filhos, na dor em que essas pessoas são abruptamente lançadas pela morte trágica. Me vejo inventando explicações, imaginando o momento, o desespero, a solidão, o impulso, a dor que os fez tirar a própria vida.
Algumas perguntas passam a me acompanhar. Como? Por quê? "Por alguma razão, você acredita que se estivesse chovendo — se não fosse o sol escaldante do começo de janeiro — não haveria impulso. O sol brilhou errado, como num acidente. Desde então, você pensa que todo suicídio é em parte um acidente".
Concordo com o narrador de "Dia Um", de Thiago Camelo, romance que parte da morte do irmão mais velho do autor. No primeiro ano de minha residência médica em psiquiatria, um senhor de uns setenta fora internado após tentar se matar. Dias depois, teve o que chamamos de virada maníaca: o antidepressivo fez com que se apresentasse diante de nossa incredulidade alguém exultante, vigoroso, cheio de projetos, cantarolando pelos corredores, excessivamente feliz. Aquilo me intrigou. Qual dos estados era a verdade daquele homem? E se ele tivesse conseguido morrer?
Anos atrás, depois da morte de um escritor muito jovem, reconhecido, de rosto terno e muito talento, escrevi um texto em que me punha a pensar sobre escritores e suicídio. Lendo o conto "A Pessoa Deprimida", de David Foster Wallace, eu havia sido tomada pelo fascínio e por uma estranha curiosidade: como o autor conhecia tantas medicações psiquiátricas e escrevia com tanta propriedade sobre um tratamento de depressão? Eu já sabia que ele havia se matado e não foi difícil descobrir que o próprio autor, ao longo da vida, tomara boa parte daqueles remédios e passara por internações psiquiátricas e por eletroconvulsoterapia, o famoso eletrochoque. Como psiquiatra e escritora me vi a indagar de que maneira o sintoma virava palavra e construção narrativa, se havia alguma chance de ser justamente a dor o pulso do ritmo de escrita de Wallace.
Muitos são os escritores e artistas que se mataram em todas as épocas, e ao longo da história da humanidade por muito tempo se relacionou a melancolia ao gênio criativo, como se este se devesse àquela. Se os melhores registros da melancolia nos foram legados por escritores — a literatura chega onde nenhum tratado de psiquiatria consegue chegar — era de se esperar que até nossos dias se relacionasse algum tipo de gênio com a chamada dor da alma. Talvez por isso eu mesma tenha tido, diante de David Foster Wallace, a tendência a atribuir seu talento a seu sofrimento. Sigmund Freud rompeu com a tradição dessa associação e, segundo Maria Rita Kehl no prefácio a "Luto e Melancolia", "teve a elegância de se recusar a patologizar a inclinação de algumas pessoas excepcionais à criação artística".
No filme "O Final da Turnê", de James Ponsoldt, o jornalista David Lipsky acompanha David Foster Wallace na viagem de divulgação de "Graça Infinita". Ao propor ao escritor uma explicação de certa forma literária (ou narrativa) sobre o período em que foi internado por risco de suicídio ("Então você estava nos seus quase trinta anos, você estava sofrendo, querendo se tornar bem-sucedido..."), o jornalista é interrompido e escuta: "eu acho que o diagnóstico não muito sofisticado é que eu estava deprimido."
Foi a partir de Freud que deixamos de poetizar o sofrimento psíquico e a loucura e começamos a encará-los como fonte de dor e não de inspiração. Se são muitos os artistas melancólicos e loucos, infinitamente maiores são os depressivos e psicóticos impossibilitados pela doença de sublimar sua dor através de qualquer arte, presos no mesmo do sintoma. Pois é isso o sintoma, a perda da possibilidade de ser si mesmo e precisamente da capacidade criativa. Na residência médica, constatei com surpresa que quase todos os delírios eram iguais: os pacientes estavam sendo perseguidos, ou seus pensamentos estavam sendo influenciados pela televisão, ou eles sentiam que não valiam nada e que apodreciam por dentro, como se todos tivessem estudado o mesmo roteiro. Eu havia recém-assistido ao filme "Estamira" e parecia que a loucura poderia ser bela, mas bela é só uma ínfima parte da loucura, a que escapa à repetição que é por definição o sintoma e então aparece para nós; a que resta de todo o submerso tragante de dor do qual a palavra e o gesto artístico só saem com um esforço descomunal.
No meu texto, eu escrevia que a partir do momento em que o adoecimento é entendido como perda e não como aumento da possibilidade criativa, poderia-se esperar que os tratamentos, cada vez mais avançados, devolvessem a uma pessoa as suas capacidades. É essa a intenção da prática clínica, e é o que acontece em boa parte dos casos (este texto não tem o intuito de demonizar as medicações psiquiátricas, que muitas vezes são imprescindíveis, e sim de pensar sobre elas). Mas temos sido alertados sobre um aumento importante das taxas de suicídio, mesmo que medicações mais novas e teoricamente mais eficazes tenham sido inventadas.
Quando pesquisas estadunidenses apontaram uma queda dos índices de suicídio de 1987 a 2000, isso foi rapidamente explicado pelo advento e difusão das medicações antidepressivas. Mas análises mais aprofundadas mostraram que a diminuição se deveu à melhora dos índices de desemprego e à redução do porte de armas de fogo, não ao aumento exponencial do uso de antidepressivos, como a indústria farmacêutica queria fazer crer. Pelo contrário: alguns estudos apontam para a medicalização do suicídio como fator causal. É sabido, por exemplo, que algumas medicações dobram o risco de pensamentos suicidas em menores de 18 anos (por motivos não completamente esclarecidos) e que em algumas pessoas pode causar uma inquietação angustiada conhecida como acatisia, associada algumas vezes a pensamentos e atos suicidas. Alguns estudos concluem, de forma surpreendente, que, quanto maior o investimento em programas de saúde mental e acesso a tratamento, maiores as taxas de suicídio, apontando para uma direção divergente à do senso comum e mesmo da maioria das diretrizes terapêuticas. Como compreender algo assim?
A resposta a essa pergunta parece ultrapassar as estatísticas de aumento das taxas de suicídio por acatisia ou algum outro efeito colateral. Talvez a questão seja precisamente a melhora proporcionada pelos antidepressivos: se por um lado a diminuição de sintomas alivia, por outro exacerba a falta de sentido por esse mesmo alívio — então tudo se resume a química? João Augusto Pompeia, no livro "Na Presença do Sentido", formula hesitações frequentes nos consultórios de psiquiatria: "o que sinto, o que penso que as coisas significam, isso sou eu ou é efeito do remédio? O próprio fato de um remédio funcionar tão bem facilita que a pessoa desacredite do sentido da vida. Como saber o que na verdade as coisas significam para ela? Isso representa, então, um esvaziamento de significados. (...) O sentido se esvazia, não com o surto, mas com o remédio."
O próprio adoecimento não deixa de ser, em alguns casos, uma agudização da verdade que precisamos esquecer para viver. Alguém que sente a possibilidade sempre iminente da morte através de uma crise de pânico não está fora da realidade como se poderia supor — somos mortais, afinal. A vida, se nos enxergarmos como o punhado de células que somos, dentro da Terra, esfera ínfima no universo, não tem mesmo sentido. Mas nos é dado, como humanos, buscá-lo ou construí-lo incessantemente como se houvesse. Algo próximo ao que Hannah Arendt chama de liberdade e que nos caracteriza como humanos: a capacidade de começar. Embora devamos morrer, pois somos mortais, o que nos distingue das outras espécies é o fato de que, apesar disso, nascemos para começar. E por isso a arte, a poesia, e o retorno à pergunta de por que, então, tantas pessoas tidas como gênio se mataram se estiveram, afinal, aninhadas no poético, ou na intensidade máxima da vida.
O mais provável é que não seja possível responder, porque o suicídio ecoa justamente o que o motivou: a incompreensibilidade absoluta, impermeável a qualquer tipo de comunicação. Uma dor onde nem mesmo as pessoas amadas conseguem chegar. Uma solidão que podemos apenas rondar, como faz o narrador de Thiago Camelo: "muito pouco podia ser dito, explicado. E nada era sujo e revelador como uma ferida. Ou mesmo quente, como a febre."
Em "Luto e Melancolia", Freud relaciona a instauração da melancolia a uma perda, ainda que inconsciente. Mas em muitos casos, essa perda não é visível ou compreensível. De fora, vemos alguém com uma vida que consideramos perfeita (mas ver de fora é sempre ver de fora), e se há alguma falta aparente, é justamente a falta da falta (devo essa reflexão a João Augusto Pompeia).
O personagem David Foster Wallace, nas últimas cenas de "O Final da Turnê", diz acerca dos episódios de depressão que o acometeram ao longo da vida: "Não foi um desequilíbrio químico, ou drogas, ou álcool. Foi muito mais eu ter vivido uma vida incrivelmente americana. A crença de que, se eu conseguisse X, Y e Z, tudo ficaria bem."
A vida incrivelmente americana dita e escrita por Wallace talvez seja a potência máxima de um modo de viver que também é pressuposto por Freud, quando ele relaciona o início da melancolia à perda de algo, mesmo inconsciente; um modo de viver em que, em partes, se é o que se tem, como emprego e amor, e o sofrimento se justifica quando se perde qualquer dessas coisas ou quando nunca se chega a atingir. Nesse modo de vida — que é o nosso — a falta, constituinte do humano, assume caráter provisório e exige preenchimento incessante. Mas Wallace aponta para outra faceta desse sofrimento: a conquista de tudo o que é preestabelecido querer gera outro tipo de vazio, este impossível de se preencher.
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Quero receberEu havia escrito boa parte dessas reflexões em 2018, quando no Brasil se vislumbrava um pessimismo político, mas ainda não nos tinha atingido o pessimismo climático, que estremece a ideia de futuro. Encaro minha própria angústia para tentar compreender os que tiraram a própria vida; lembro do que me disse um paciente, a depressão é uma craca que gruda em você, da qual você não consegue se livrar."Nada disso me apazigua quando penso naquelas mortes, nada disso parece explicação suficiente, porque não há explicação suficiente.
Empresto outra passagem de "Dia Um": "Você tomou como missão: não idealizar o suicídio. O suicídio é um erro. A dor é transitória. A dor é transitória. Alguém o marcou no Instagram. A foto é do livro de Camus, 'O Mito de Sísifo', e você já sabe o que está por vir. A velha frase 'Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio'. Foda-se, você pensa, foda-se o Camus, ele está errado, a começar por esse aforismo oportunista, essa arbitrariedade existencialista, por se referir ao labirinto infernal pelo qual você e sua família passaram antes, ainda com seu irmão vivo, e passam agora, depois da morte dele, como algo dado e consabido. Passam de fato, na realidade, na pele. E então vem um rapaz que morreu, um músico tão novo, todos o chamam de 'cometa' e você não, não, ele não era um cometa, ele era gente como a gente, ele estava sob o mesmo céu, sob a mesma terra."
Talvez quando conseguirmos incluir o vazio no seio da vida — por meio do silêncio e das possibilidades de recusa e renúncia ao que se deve ser, e até mesmo da arte e da poesia, onde o que se compreende e o que não se compreende se encontram, nossos índices de suicídio possam enfim diminuir (e a Terra, quem sabe, deixe de estar à mercê de nossa necessidade de mais e mais e possa começar a desaquecer).
Enquanto isso, digo a quem ama alguém que se matou, emprestando mais uma vez a voz do narrador de Thiago Camelo: "você sabe, ele não quis matar a si mesmo, e sim aquilo que já o tirava da vida havia décadas." E a quem questiona o fato de seguir vivo sobre a Terra, digo que nosso corpo é lugar tanto de dor quanto de prazer, e que ambos são transitórios. Por mais insuportável e perene que pareça, toda dor passa. A morte é que não. Nem a dor e a perplexidade dos que ficam.
Centro de Valorização da Vida
Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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