Bela, recatada e do lar, ou seria um alvo fácil para violentar?
Nos últimos dias, nos deparamos com um comentário sexista feito pelo empresário Tallis Gomes que gerou indignação nas redes sociais sobre o lugar que a mulher deveria ocupar na sociedade.
Muito se falou sobre o quão grave foi a fala do empresário ao afirmar que mulheres não poderiam ocupar espaços de liderança, mas pouco se discutiu sobre o quanto esse posicionamento reacende um debate importante acerca de como estereótipos de gênero alimentam e perpetuam comportamentos violentos e abusivos contra as mulheres.
Vale dizer que falas como a do empresário não apenas alimentam desigualdades de gênero no campo econômico e social, mas igualmente contribuem diretamente para duas formas recorrentes de violência contra a mulher: a violência patrimonial e a violência psicológica.
Sabemos que a violência patrimonial, definida pelo artigo sétimo da Lei Maria da Penha, diz respeito a todo e qualquer ato que objetiva controlar ou subtrair os recursos financeiros ou bens da mulher, afetando sua independência econômica. Falas que sugerem que o homem deve ter controle sobre as finanças ou decisões familiares, são a base para essa forma de abuso.
Ao alimentar o estereótipo de que o papel da mulher é de subordinação e dependência, reforçam a ideia de que cabe ao homem não apenas as decisões financeiras do casal, mas igualmente o controle sobre os bens e rendimentos da mulher. Essa narrativa diariamente legitima práticas de violência patrimonial, como o que ocorreu, por exemplo, com a influenciadora Patricia Ramos e a apresentadora Ana Hickmann.
Sob outra ótica, a dependência econômica é usada como moeda de barganha para relações abusivas e desonestas, onde se vangloriam de terem construído "impérios" sozinhos, enquanto o trabalho de cuidado, invisível e não remunerado, termina, não raras vezes, em um distrato imoral e vilipendioso patrimonialmente para a mulher que se absteve de focar em sua carreira, de ter sua independência financeira para seguir a velha e falsa cartilha de hierarquia dentro de uma relação conjugal.
Todavia, a violência patrimonial não ocorre de forma isolada, mas frequentemente vem acompanhada da violência psicológica, através de manipulação, humilhação e também da redução da autoestima da mulher. Quando um homem determina que é direito dele controlar a vida financeira da mulher, ele também está, por silogismo lógico, exercendo controle emocional sobre ela, reforçando a ideia de que as mulheres são incapazes de gerenciar suas próprias finanças ou tomar decisões, atingindo diretamente a autoestima e a confiança da mulher em si mesma.
O resultado dessa manipulação faz com que muitas mulheres acreditem que não conseguirão sobreviver financeiramente sem um parceiro, alimentando ciclos abusivos pelo medo de não conseguirem se sustentar e acreditando que suas decisões e opiniões não têm valor. Essa combinação de controle econômico e abuso psicológico tem mantido inúmeras mulheres presas em ciclos de dependência e extrema vulnerabilidade, muitas vezes sem perceberem que estão sendo violentadas.
É preciso lembrar que, quando mulheres são rotineiramente expostas a discursos que as colocam em posição de inferioridade, começam a duvidar de suas próprias capacidades e são manipuladas a acreditar que o lugar de submissão e dependência é o que lhes é natural, e que qualquer tentativa de romper esse ciclo seria uma afronta ao bem-estar da família e até da própria sociedade.
Posicionamentos como o do empresário ultrapassam a linha da opinião individual, pois, na verdade, refletem um sistema histórico patriarcal que ainda legitima o controle masculino sobre as mulheres, principalmente no que diz respeito às esferas financeira e emocional.
A violência patrimonial e psicológica, muitas vezes invisíveis, são consequências diretas de comentários como esses, que alimentam e reforçam a dependência e a subordinação feminina. Se quisermos avançar, não apenas na luta pela equidade de gênero, mas igualmente no combate à violência contra a mulher, é urgente desconstruir estereótipos sexistas que tiram da mulher o direito de construir suas narrativas e escrever sua própria história. O combate à misoginia e ao machismo em todos os seus recortes, incluindo nos discursos aparentemente inofensivos, é um passo essencial para o combate à violência de gênero que ainda aprisiona tantas mulheres no Brasil.
*Fayda Belo é advogada criminalista especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, e pós-graduada em penal e processo penal. Fayda é escritora do livro "Justiça para todas: o que toda mulher deve saber para garantir seus direitos", um guia que esclarece crimes de gênero para as mulheres. Atua também como palestrante, professora convidada, consultora de gênero, diversidade e inclusão, integra a lista do Brazil Charlab como uma das advogadas mais influentes do Brasil. Atualmente, Fayda ocupa cadeiras de destaque em mesas como a do Comitê permanente do Fórum Nacional de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher (FONAVIM), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Diretoria Nacional da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, Membra do Instituto Bertha Lutz, Diretoria do Instituto Mulheres no Poder, além de possuir formação em equidade de gênero pela ONU Mulheres.
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