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Opinião

Como 'Teoria King Kong' leva ao teatro debate sobre corpos inadequados

"Teoria King Kong" é o nome de um livro [1] da escritora feminista francesa Virginie Despentes, traduzido por Márcia Bechara e adaptada por Yara de Novaes para o teatro. O resultado fez grande sucesso em São Paulo e Rio e agora entra em turnê pelo Brasil. Transformar uma teoria em dramaturgia não é fácil: dá muito certo e temos um Sartre ou dá bastante errado e temos aquelas peças educativas, moralizantes mal ou bem disfarçadas de intelectualidade. Como se o teatro precisasse de funcionalidade social ou legitimidade cultural para existir.

Para que a adaptação saia a contento é preciso respeitar o problema da passagem entre discursos. Problema que se acentua pelo fato de que o discurso de Despentes é de autoria forte, intenso no testemunho e excruciante nos detalhes descritivos dos seus três paradigmas fundamentais: estupro, pornografia e prostituição. A solução muito feliz consistiu em desdobrar o protagonismo em três vozes. Elas traduzem a experiência pessoal de Virginie como resenhista de filmes pornô, prostituta, escritora e diretora de cinema, caminhoneira, leitora, escritora e ativista punk-feminista. A inteligência dramatúrgica evitou a solução mais simples e óbvia, no recurso ao monólogo. Ocorre que diferentes vozes, alternando-se em conflito e conciliação, mantém um único corpo como suporte. Daí a elegância da solução na qual Verónica Valenttino, Ivy Souza e Amanda Lyra alternam vozes, dicções e corpos: negros, brancos e trans. Corpos marcados pelo excesso e pela inadequação:

Sou esse tipo de mulher com quem não se casa, com quem não se faz filhos; falo deste meu lugar feminino sempre de maneira excessiva, muito agressiva, muito barulhenta, muito gorda, muito brutal, muito peluda, sempre muito viril como me dizem (...) Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar a sombra. [2]

É assim que Despentes chega na alegoria de King Kong como modelo de um corpo inadequado: grande demais, peludo demais, violento demais, incapaz de se controlar, propenso a se apaixonar por corpos desproporcionalmente diferentes, corpo enjaulado, exilado de seu ambiente natural, corpo negro, mas também corpo cujo poder se impõe à civilização, corpo cheio de buracos, alguns deles criados por balas.

Nesse filme, King Kong se torna uma metáfora da sexualidade antes da separação dos gêneros imposta politicamente no final do século 19. King Kong está além do masculino e do feminino. Ele está ligado à ligação entre homem e animal, adulto e criança, bom e ruim, primitivo e civilizado, preto e branco. Ele é híbrido, antes da imposição do binário. A ilha no filme se torna o potencial para uma sexualidade ultrapoderosa e polimórfica. Exatamente o que o cinema deseja capturar, exibir, distorcer e, no final, destruir.

Três traços tornam o feminismo de Despentes particularmente interessante para o debate brasileiro atual:

  1. Pensa o feminismo sem desconsiderar os impasses e dificuldades representados pela sexualidade e pela feminilidade. King Kong compreende tanto as despossuídas de gênero, as agressivas, supersexualizadas, quanto as carregadoras de piano e dessexualizadas.
  2. Considera a luta das mulheres no arco histórico mais longo no contexto do capitalismo e da exploração específica que ele impõe ao sistema sexo-gênero, particularmente no contexto dos avanços conquistados pelas mulheres francesas, desde os anos 1960 e da situação das mulheres no contexto da imigração.
  3. Intervém no conflito de gêneros sem suturar a divisão subjetiva e a diferença interna aos agrupamentos de identidade. Fala em nome das feias, das gordas, das que ninguém quer, mas sem se identificar como vítima do sistema gênero-raça-classe. Coerente com suas raízes no movimento Punk ela parece advogar: "rebotalho sim, vítima não".

O desafio de abrasileirar uma tese como esta, atualizando a temática feminista, fica muito bem resolvido na dramaturgia de Márcia Bechara e Yara de Novaes pelo recurso pela tripartição das vozes, que parecem replicar as problemáticas convergentes, mas diferentes do feminismo à brasileira.

A ideia de projetar intervenções da própria Despentes, com passagens legíveis de seu texto e trilhas musicais hard metal, industrial e tecno, tematiza assim a decolonização do feminismo. A tarefa estética e política é justamente dar forma para um corpo que não tem lugar. Daí o recurso a um fora do mundo, quase sem dignidade ontológica, como a luz que nos chega de Urano, talvez do apartamento de Paul Preciado.

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Uma luz emitida por uma super-nova, que talvez não exista mais. Há um título bem escolhido para representar a monstruosidade em cada uma. É quando o jogral canta em uníssono: "Você não está bem". Mas isso não é dito como uma ordem, uma proclama ou uma verdade revelada. A estranheza crítica vem de que o dizer parece um jingle, humorado, paródico e auto-irônico. Como que a captar que este "Você não está bem" pode se tornar apenas mais uma estratégia de submissão e silenciamento, como a loucura histérica, a hipocondria induzida, o sentimento de cair como um papel de parede amarelo, rasgado, caindo de uma parede envelhecida.

Outra solução chave da peça é a cena do canivete. Durante o estupro, conduzido por três homens contra seu corpo, Despentes se fixa mentalmente no canivete que está no seu bolso. Ela o maneja com facilidade e poderia tirá-lo rapidamente para enfrentar os agressores. Mas esta ideia não lhe vem. Ela está dominada pela ideia que a arma não seja achada pelos estupradores. Ou seja, em vez de usar o canivete em defesa própria, ela se paralisa em estado de desamparo e temor extremo de que o outro possa tomar seus próprios recursos, suas defesas, suas proteções e usá-la contra ela mesma.

É aqui que peça encontra a controvérsia criada em torno da decisão da Fuvest de adotar apenas mulheres em sua lista de autoras para a prova de literatura no vestibular do ano que vem. É possível que Despentes criticasse a proposta, ainda que com a mesma vergonha que ela sentiu ao não sacar o canivete. Talvez ela repetisse de forma mais irônica: "Você ainda não está bem, mesmo assim". Eventualmente ela perguntaria: onde isso vai dar se pensamos no arco histórico mais longo desta questão? Mais além dos gêneros das autoras: como elas sexualizam ou de-sexualizam suas escritas?

Quando se estuda teoria da transformação há sempre um conflito entre o desejo de mudar e a resistência. No processo de mudança desejo e resistência não atuam no ar, mas se atualizam a cada vez no espaço e tempo. Há uma tensão entre a pressa e a prudência. Assim também esperamos entre os casos que vão acontecendo na "fronteira" da mudança, quais deles serão elevados à condição de protótipo e exemplo generalizado para a mudança como um todo. É o que os antigos teóricos da guerra chamavam "batalha decisiva" e os teóricos da informação, chamam de "ponto de mutação", ardentemente procurado pelos psicanalistas como "interpretação crucial".

Avanços muito extensos, ou muito rápidos podem despertar reações excessivas e paralisantes. Vitórias no tempo curto podem virar derrotas no tempo longo. Não se trata apenas de ganhar ou perder. Uma vitória arrogante, gera efeitos colaterais como a sensação de humilhação. Um êxito da vanguarda, pode deixar o amargo sabor de que não estamos nos transformando a todos, como diria Sojourner Truth, mas só alguns nos usaram para obter vantagens. Ao contrário, processos, com ganhos e perdas, avanços e retrocessos, diluem a diferença no pacote final, criando o sentimento comum e um sacrifício necessário e consentido.

Mas quando temos a percepção de que há condutores e mestres, assim como conduzidos e subalternos, podemos sentir que a justiça foi feita por meios injustos. Neste caso transformações locais não se generalizam em transformações estruturais. O que diferencia as segundas das primeiras é que nelas mudamos também a lei que preside e interpreta a transformação ocorrida. O nome da rega, o significante mestre, despersonalizado e desprovido de sentido casuístico, anuncia assim a regra geral para as transformações vindouras.

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Quando isso não acontece nos arriscamos a repetir antigos erros, só que agora com o sinal negativo. Um exemplo de transformação local é dado pela hipótese de Copérnico: mudamos quem está no centro: não é a terra, mas o sol, contudo o sistema continua "cêntrico". A transformação estrutural só acontece anos depois, com Kepler, quando abandonamos o sistema das órbitas centradas por órbitas elípticas, sem centro definido. Transformações locais incorrem sempre na gramática da exceção, do caso isolado e do lobo solitário (até mesmo o solitário)onde emergem resistência do tipo: nem todos os homens são assim, de fato alguns e algumas agem como King Kong ... mas.

Enquanto estamos na transformação local percebemos o processo de mudança à luz da hipótese do excesso. Nela justiça, vingança e crueldade formam uma perigosa linha de continuidade. Pessoas singulares são tratadas como "pessoas-tipo" e as falas são generalizadas em uma luta imaginária de personagens, como se da luta entre King Kong e Goodzila fosse emergir uma nova era, pós antropocênica, onde só vão existir King Good People.

Estamos ainda na fase vestibular desta nova era. Por isso não caso da Fuvest o que conta não é o fato de que desta vez são todas mulheres, muitos mais anos foram só homens. Não é o fato de que se trata de uma exceção simbólica, que talvez se altere aqui a pouco. Não é o fato de quem manda, dispõe ou decide. A pergunta essencial aqui é: qual teoria da transformação estamos sancionando?

Referências:

[1] e [2] Despentes, V. (2016). Teoria King Kong. Tradução de Márcia Bechara. São Paulo: n-1 edições.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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