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Opinião

Em encontros casuais na rua, ela fez da escuta uma arte e um tipo de amor

Em sua tese de doutorado "Corpo Escuta: Performance de uma Pessoa Escrita: escuta, escrita, relação e sensação de realidade na arte", Tatiana Schunck move-se entre os silêncios e a escrita de mensagens colhidas de encontros na rua.

Arguta e cortante como uma analista lacaniana, ela nos traz esta versão literária desta antiga tela de Vermeer, não a "Moça com Brinco de Pérola", ainda que seus achados façam jus ao título, mas "A Rendeira".

Vermeer (1669) A Rendeira. Óleo sobre tela, 24,5 x 21 cm, Paris: Museu do Louvre
Vermeer (1669) A Rendeira. Óleo sobre tela, 24,5 x 21 cm, Paris: Museu do Louvre Imagem: Reprodução

Neste trabalho o mestre holandês pinta uma mulher tendo às mãos um tecido, sob a luz de uma janela, que se abre ao lado da imagem, iluminando um fio. Mas você a vê mesmo assim.

A mesma personagem, novamente cerzindo, reaparece retratada em "Rua de Delft" , mas agora do ponto de vista do público e da rua.

Vermeer (1679) Rua de Delft. Óleo sobre Tela. 44 x 38,5 cm, Amsterdã: Rijksmuseum
Vermeer (1679) Rua de Delft. Óleo sobre Tela. 44 x 38,5 cm, Amsterdã: Rijksmuseum Imagem: Reprodução

Ambas olham, fixa e tensamente para o pano plissado, prestes a ser arremetido pelo único objeto que não está lá: a agulha.

A arte da escuta escrita, apresentada ao leitor, retoma a antiga estrutura da linguagem como uma tessitura, ou seja, téssera, esta antiga metáfora de onde vem o termo texto.

Mas em vez de uma agulha, Tati tateia com uma máquina de escrever. Postando-se ao lado de uma estação de metrô, em meio à multidão, em um lugar qualquer, desde que alcançado por uma luz em foco lateral, ela produz pérolas como a "Performance de uma pessoa escrita" de 2013, onde aprendemos o valor da palavra de qualquer um.

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Como ela diz em síntese ao seu processo de escuta: lá escuto e percebo a vida, espero, convido, recebo. Como boa escutadora ela não está aqui, seu corpo é presente, mas é desde lá, desde o outro que ela espera e convida.

Recebo como placebo, este estranho e indecifrável efeito de cura causado pela palavra em um certo modo de presença. Alguns o chamam de truque, sugestão influência e até mesmo hipnotismo. Mas diante dele ainda nos comportamos como nossos antigos falsos antropólogos, que ainda assim captaram um grão de verdade, ao perceberem que os "primitivos têm estas estranhas crenças de que quando capturam uma palavra se apossam ao mesmo tempo da coisa".

Ao que parece os artistas e agora também os teóricos da estética chegaram mais uma vez à nossa frente, a dos psicanalistas, para dizer que a arte é uma relação e não uma coleção amontoada de objetos.

Dentro dela o silêncio protege as conversas. Por isso digo que Tati tateia sua máquina de escrever entre silêncios. Por isso sua leitura é também a leitura de hiatos. Espaços vazios nos quais o corpo teima em se pronunciar. Afinal são os espaços entre teclas e entre telas que autorizam esta estranha ideia de uma heteroautobiografia.

O auto, pode ser proper, o idem pode ser mesmo, mas só o ipso pode ser ali onde não é.

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O auto induz uma propriedade e até mesmo um amor próprio. Mas é só no hetero, que se pode coabitar o silêncio dos espaços infinitos das vidas por dizer. Por isso, a rigor, só há dois momentos na lógica do encontro, o do achado e o finalizar não só a sua forma de se contar, mas a sua "saída da ação". Como se a acontecência fosse um efeito retrospectivo e e retrospectivamente criado do oi-tchau. A rua termina quando abro a porta de casa.

Lacan dizia que a paixão do psicanalista é a paixão da ignorância, da douta ignorância pela qual desperta-se a curiosidade e a atenção. Neste trabalho, Tati Schunck desenvolve uma arte paralela, talvez um de seus casos irmãos gêmeos da psicanálise, tal qual o socrático "só sei que nada sei" e o lacaniano "furo no saber" aparecem aqui o "mesmo sabendo, no fundo, nada sei."

Por isso o texto todo funciona entre processos de desaparição e de emergência, tempos nos quais de quando em quando tem notícias da presença da escuta. Rapidamente se impõe como um material obrigatório para os que se querem aventurar na arte da escuta, profissional ou ainda, o que melhor, de forma amadora.

Temos aqui um exemplo maior de como a arte da escuta requer o manejo de um certo vazio no escutador. Vazio onde a voz ressoa e onde as palavras do outro emergem como sendo escutadas em sua ipseidade, ou seja, em seu caráter único, não repetitivo e insubstituível.

Essa é a voz que tentamos alcançar quando precisamos retirar aquele analisante de seu imundo proverbial, tão rico e tão desperdiçado por sua linguagem cheia de panos, quentes e frios. Esta é a voz que é protagonista no trabalho apresentado por Schunck A voz que é como a agulha de Vermeer, para a qual tudo converge mas ela mesma não está lá. E é assim mesmo que a escrita posterior a reconstrói, como a dar bordas aos precipícios de um buraco sem fundo: Abgrund ('abismo'). A única figura heideggeriana ausente no texto em questão.

Entre a presença que convida e a que desconvida, Tati vai chegando aos poucos. É assim tanto com seus "depoentes" quanto com seus "depoemas". Ela vai chegando, como as mãos de uma fiandeira. É no espaço vazio da mão que maneja o pano e a agulha que toda a primeira cena se desenrola. Folha em branco e tipos móveis. Dedos e máquina. Palavra e voz. Gesto e imagem.

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A matéria-prima da escuta-escrita poderia ser qualquer coisa. Pano para manga. Mas quase sempre é apenas sofrimento em busca de palavras.

"Quando tinha seis anos vi meu pai ser assassinado, Quando eu estava grávida da minha primeira filha minha mãe faleceu. No segundo filho meu marido faleceu".

Mas que o leitor não se precipite. Aqui ele não encontrará o romance policial, tão ao gosto da psicanálise. Nem mesmo o sabor trágico dos afetos intensos e trágicos. A tragédia pós-moderna na qual Tati toca não é espetacular nem espetaculosa, mas humilde cerzir de fragmentos de sentido. Como no luto, às vezes fica faltando um pedaço de retalho, outras vezes são dois ou três remendos que sobram. Quase sempre nos pegamos procurando sozinhos, no escuro, uma agulha, que não está lá.

A escuta "detox" de Tati é feita em meio aos barulhos da cidade, nossa paisagem sonora que é condição para nossa comunalidade. Pontuada por placas e sinais. Mas seu centro de gravidade é a súbita intimidade que se forma entre estranhos.

No seu interior percebe-se a força e a presença do insabido, como tensão de aproximação. É o insabido que abre para palavras imprevistas e suspende o juízo de vergonha ou de culpa. Verdadeiro catalizador da associação livre, ela se baseia em um truque do qual vale a pena fazer a anatomia. Quando encontramos alguém ao acaso, sem que marcas antecipatórias possam pesar demais, ativamos nossa potência de ficção. Os exercícios de Tati são experimentos de intimidade extraída da comunalidade.

Começar, terminar, não saber, dizia a menina de 17 anos tentando se entender politicamente. Isso depende de pisarmos ao mesmo tempo em solo gasto, janelas acesas dos apartamentos noturnos, quem estará por trás das cortinas. Qualquer um. Um entre outros. Está dada a condição de comunalidade sem a qual o outro será sempre revestido pela máscara sangrenta da Louva Deusa comedora de cabeças.

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Por outro lado, temos o microespaço, a exiguidade dos meios, a compressão movente na estrutura da situação: um cartaz, uma máquina de escrever, uma cadeira, uma e só uma pessoa.

Em terceiro lugar há algo que convoca este modo de presença antes delineado. Uma atenção disponível e vulnerável. Hospitalar e hospitalária. Mas a verdadeira máquina de escrever começa quando este encontro se dá em progressão, ou seja, em relação continuada, responsiva capaz de acompanhar o vibrato da voz que circula.

Quando tudo isso acontece temos um instante de intimidade. Instante radical pois ele suspende a regra geral da cidade que é a fronteira entre público e privado. Ele a suspende sem abolir o espaço privado e sem mostrar, de modo obsceno o privado e o público. Ele suspende extraindo o íntimo do interior da comunalidade.

A rua se faz casa, o distante torna-se próximo, o que devia ficar em segredo vem à luz, o que era para ser sentido como morto e inanimado torna-se vivo e movente. Mas ao mesmo tempo, casa é casa e rua é rua, estranhos continuam estranhos, segredos não são revelados e a morte continua a espreita. Arte é arte. Vida é vida.

Se a descrição se sustenta poderíamos dizer que a Tatinvenção é prima em primeiro grau de outra experiência originária da psicanálise. Lautréamont definiu o surrealismo antes do surrealismo como este "encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação". Quase se pode ouvir esta máquina fazendo shunck, schunck, schunk nesta mesa de dissecação de vidas, quase um divã, ao abrigo do guarda-chuva formado pela palavra. Enquanto todos praguejavam contra o frio, Tati fez sua cama na varanda. Ali ela emprestou suas escutas, uma espécie de escuta flânerie, para quem quer que passasse.

Não sou daqui. Não vou conseguir. Será que vai dar certo? Três expressões típicas daqueles que estão namorando o começo da viagem. São também o hit parade de nossos analisantes. Nunca entendi por que chamamos de paradas coisas que estão mais para andadas. Nunca soube por que chamavam os sucessos musicais de batidas (hit). Mas agora acho que tem algo que ver com o que Tati chama de voz. Um andamento ritmado que é a paisagem da escuta.

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Especialmente quando se começa a clinicar muitos agarram-se ao enquadre, setting ou contrato. Como se na ausência destas regras não fossemos saber agir. Como se bastasse isso para o precipício. Ainda que supervisores e manuais de técnica tentem deflacionar o empuxo ao enquadre às vezes acaba arruinando a pretensão de analistas promissores. Para estes seria válida a apresentação sintética do método baseado na agulha de Schunck:

(...) Um corpo atento e presente com uma máquina de datilografia, dois bancos, às vezes, uma lousa onde está escrito o nome da ação (isso depende do local) e a espera pelo outro, que vem ou que não vem. Eu estava ali agindo, eu estava ali também como participante. Eu estava ali como um convite. (...) Eu falo muito pouco durante estas ações. Não se trata exatamente de uma conversa em que eu também me contaria em palavras, mas de uma escuta subjetiva, de um espaço que se abre ao esperar a presença do outro (...)

Mas como cada analista tem seu estilo poderia ser também como em "Pinto suas Unhas", de 2017:

(...) Ação realizada no Parque da Luz, Praça da Sé, entre outros espaços centrais da cidade de São Paulo, onde coloco-me à disposição com material para fazer as unhas e dois banquinhos, para pintar as unhas de quaisquer pessoas que decidam se sentar. No fundo, o maior acontecimento é a conversa que se dá nessa duração.

Ou ainda "Corpo Geo Grafia", de 2019:

Ação realizada pelas ruas do centro histórico da cidade de São Paulo, onde só me desloquei quando alguém aceitasse andar de mãos dadas comigo. Coloquei-me no espaço público com uma cartolina em mãos: "Anda de mãos dadas comigo?

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Nessas imersões indagatórias Tati age como uma benzedeira de palavras e gestos. Ela não cumpre um rito nem objetiva um fim, mas permite um encontro no sentido da "Estética Relacional" de Nicolas Bourriaud, uma experiência de escuta no sentido de "À Escuta" com Jean-Luc Nancy.

Aqui interessa menos participar ou propiciar uma atividade do que deixar ela acontecer. Tati concorre para que algo aconteça segundo um determinado arco de tensão, criado pela estrutura de uma situação, da qual ela cuida. Arte relacional, dialógica, contextual, engajada, conversational art que não é poesia, nem poema, mas função poética. Nela nem sempre o artista deve ser o centro da obra, mas não teme que isso aconteça. Como aquelas antigas medicações psiquiátricas receitadas à condição de "se necessário" e até "onde necessário".

Função poética porque o argumento "artista" recai sobre um termo indeterminado, mas formando um campo definido. Mais do que em qualquer outro caso, aqui a obra se completa no texto do qual o leitor agora pode participar. Contudo, não é na condição de destinatário, mas de testemunha de viagem e intérprete da situação que ele entra e define esta segunda cena, esta outra cena, esta andere Schauplatz, ou outra Tatiplatz, criada pelo texto escrito. Mas aqui ela é autora, não é artista? Dúvida que coloca o trabalho em questão na antiga tradição de reflexão da literatura sobre as artes visuais, num Brasil cujo letramento é tardio.

Palavra, imagem e gesto criam assim uma espécie de circularidade torcida entre os acontecimentos acontecidos e os acontecimentos narrados. Texto composto por diferentes tecidos. Se a arte que se produz hoje nem sempre pode ser identi?cável como arte, não é só em função da movência de seu criador e agente, mas também pela indeterminação de seu sentido e pelo fato de que ela questiona basicamente as experiências de reconhecimento, e mais radicalmente as experiência de sofrimento. Como para os surrealistas a cidade aqui é personagem, assim como a mulher enigma.

Como em uma garrafa de Klein este tipo de arte requer necessariamente duas cenas, articuladas como duas bandas de Moebius, com torções de sentido contrário, costuradas juntas. Numa das bandas a arte que se parece com a arte. Na outra banda a arte que se parece com a vida.

Essa é também a fórmula que define, a nosso ver, a escrita de uma caso clínico. Ou seja, não é preciso um enquadre disciplinar, um museu ou um colecionador, mas um curador e duas séries transformativas, onde uma representa uma perspectiva escrita, fragmentada e a posteriori, sobre um evento organizado por regras mínimas à priori, onde entre eles falta pelo menos um elemento: uma agulha que não estava lá.

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Por isso concordo com a tese de que a escuta faz corpo, no sentido de que ela faz uma unidade, mas não de que a escuta faça todo corpo.

Escutar sugere: tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a. Aplicar o ouvido com atenção para perceber ou ouvir. Ouvir. Atender os conselhos de. Espiar. Espionar. Prestar atenção para ouvir alguma coisa.

Por isso o que temos aqui são fragmentos de uma espionagem. Nossos entrevistos sobre as entrevistas. Ler o trabalho é consentir com o consentimento de ser escutado. É preciso apropriar-se, autoapropriar-se, chegar em si para fazer agora corpo com os olhos da leitura, onde antes estava o corpo com os ouvidos dos gestos. Fazer a própria meditação benzedeira entre ouvir (entente) e escutar (écouter).

Há uma escuta no ouvir e há uma instância sensível no ouvir. Há uma escuta mais subjetivante e outra mais objetivante. Uma escuta sagital outra transversal, Uma escuta vertical, outra horizontal. Há até, como dizia Lygia Clark, uma escuta cortical e outra subcortical.

Entre as escutas monumentais e as escutas ordinárias qualquer uma vale, desde que o corte valha. Mas perguntar quem é o escutado e quem é o escutante é como perguntar por que "será que nossos sonhos são nossos e não de outras pessoas?" Contradição performativa captada por Eduardo Coutinho: "Se o que eu mais quero é uma performance, jamais digo: faça uma performance."

A arte que se parece com a arte é a mesma escrita clínica que se parece com a psicanálise. A arte que se parece com a vida é a psicanálise ela mesma. Esta que de vez em quando acontece se com condições e a curadoria está atenta e em função.

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Entre estas condições, o consentimento parece ser uma das menos escutadas. Sabe-se que transferência é o tipo de relação que condiciona os efeitos terapêuticos e éticos de uma psicanálise. Sabe-se também que a transferência é um tipo de amor. O que não está claro até aqui é como fazemos para consentir no amor. Se a arte relacional de Tati Schunck inclui-se no que Patrícia Rousseaux chamou de arte sob transferência, ou arte transferencial, é porque ela dedicou-se sobretudo a explorar as condições contingentes pelas quais alguém concede a outro alguém inesperado e desconhecido. No sentido em que antigamente uma dama concedia uma dança para seu pretendente, uma obra como esta joga com a iminência e efemeridade do amor. Este inesperado e improvável, entre o começo e o término.

Há um abandono no sentido, um estar vulnerável àquilo que se escuta. Isso se dá a partir de uma abertura, de uma relação equânime, um consentimento ao escutado. Essa relação já é um tipo de participação do e no sentido, ao lógos, à linguagem, mas, também, um tipo de meditação, uma abertura à sensação.

Como todo amor, por mais fugaz e louco que seja, ele coloca em causa uma verdade, coloca em marcha um saber que a apreenda. E não é por outro motivo que um psicanalista define-se pela suposição de que há uma verdade em jogo no sofrimento e no amor de transferência.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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