Como alfabetizados digitais criam desafios às bibliotecas das universidades
O papel dos bibliotecários ganhou novos contornos a partir do acesso popular às plataformas digitais, o que no Brasil remonta os anos 2010.
Lembremos que o Brasil possui um histórico de atraso na alfabetização que se chocou com um salto para o uso massivo de redes sociais. Isso representa um choque de oralidade no universo que supostamente segue regras de língua escrita.
Há, portanto, um choque entre oral e escrito, que se combina com um choque geracional no uso da linguagem digital, com impacto direto no uso das bibliotecas.
Com isso passamos do paradigma do arquivo para o privilégio do usuário.
As bibliotecas passaram a ter a função de conduzir e educar os visitantes das bibliotecas na busca por informações, tanto nos meios físicos (livros) quanto nos digitais (Internet).
Mas além disso a biblioteca é um dos suportes cruciais para o desejo de sair da bolha e agregar presencialidade à experiência do saber.
Cursos livres, influencers, divulgadores científicos, assim como entulho digital convivem hoje com alta cultura, acervos digitais e internacionalização do saber.
As bibliotecas poderiam adquirir uma nova função de qualificar esta expansão e organização genérica dos saberes.
Isso cria alguns problemas imediatos:
- As novas gerações --Y (millenials) e Z-- apresentam dificuldades crescentes com a cultura do livro físico, incluindo problemas genéricos de natureza atencional e indisposição com seu manejo, aquisição e guarda. Ao mesmo tempo distinguem o livro como objeto de colecionismo e apreciação, do material digital reciclável.
- As novas gerações --millennials e Z-- possuem alfabetização digital nata, ou seja, nascidos depois de 1995, resistem a receber apoio da instrução "presencial" e têm dificuldades com programas de captura e credenciamento de textos, principalmente livros e artigos indexados que não sejam de acesso livre, aberto e gratuito.
- O sistema de credenciamento muitas vezes é complexo e demasiadamente expositivo sem que o usuário perceba de antemão que sua demanda será atendida naquele repositório.
As práticas tradicionais da biblioteconomia e a concepção de biblioteca universitária guiaram-se por muito tempo por princípios como:
- Enxergar o usuário como um ser ativo e construtivo;
- Considerar o indivíduo de acordo com o seu contexto situacional;
- Focar nos aspectos cognitivos envolvidos no processo;
- Ter maior orientação qualitativa;
- Analisar a individualidade das pessoas.
As queixas em geral passam pelas restrições de acesso impostas pelas grandes casas que têm se especializado na armazenagem e gestão de periódicos, como Elsevisier e Springer.
O acesso a este material muitas vezes é demasiado caro e envolve em várias áreas políticas de acesso restritivo [1] e falta de transparência que ofendem uma certa relação construída pelas gerações Z e millenials com o saber.
Isso passa pela ideia genérica de que o acesso ao saber e a cultura deve ser público e gratuito e que toda forma de pagamento é considerada uma violação grave e uma fonte de indisposição com o veículo que a subsidia ou patrocina.
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Quero receberÉ verdade que essa reação é mais frequente em certas áreas do que em outras. Mas deve-se contar aqui outro processo que atravessa e concorre provavelmente para o aumento das curvas de sofrimento e problemas de saúde mental entre jovens universitários, não só no Brasil, mas como tendência global.
Entre os motivos para tanto está a falta de presencialidade e de sentimento de pertencimento às diferentes comunidades universitárias, entre elas aqueles circuitos ligados ao uso e recurso às bibliotecas. O que não puder ser feito desde qualquer lugar, segundo acesso móvel e com controle livre de periodicidade será considerado um obstáculo.
A pandemia de covid-19 revelou outro dado preocupante, para o qual as bibliotecas ainda não reagiram. Uma parcela significativa dos estudantes ainda não possui acesso digital de forma segura e estável. De certa forma as bibliotecas precisam incorporar a função de disponibilizar acesso informático geral para estudantes.
Isso significa também que elas podem tomar um papel mais ativo na alfabetização digital, estabelecimento de boas e más práticas digitais e qualificação dos repositórios digitais. Isso implica levantar restrições de usos acriticamente em relação ao excesso de normatização e impulsionamento para publicação em áreas acadêmicas.
Hoje, os critérios de avaliação dos programas de pós-graduação caminham muito mais no sentido da congruência, coerências e consequência do que a produção bruta e quantitativa de dados.
O produtivismo afeta estas gerações de modo transversal e pervasivo. Dificuldade de qualificar o material digital. Como saber da pertinência de uma live, um congresso, uma aula gravada ou um discurso de divulgação científica.
Por outro lado, as bibliotecas podem caminhar em uma direção semelhante à da museologia, ou seja, cada vez mais importa a arquitetura, a experiência espacial, a promoção de cursos, debates e apresentações, até mesmo lojas e sistemas de suporte, como bancos e restaurantes.
A biblioteca não sobreviverá se não evoluir para uma espécie de espaço de convivência. O que Hal Foster chamou de complexo arte-arquitetura poderia encontrar um equivalente em um complexo saber-biblioteconomia. Isso significa que os processos formais, de certificação, indexação, normatização e padronização bibliográficas tenderão a se resolver pela interveniência de processos ligados a inteligência rtificial, liberando esforços e atenção para a promoção ativa de encontros.
Costuma-se separar os millennials (geração Y), nascidos entre 1980 e 1994, da geração Z, nascidos entre 1995 e 2015, que compreendem massivamente os atuais alunos de graduação. Os nativos digitais da geração Z são tidos como práticos, realistas, tolerantes, ativistas, avessos a rótulos, adeptos da acessibilidade e simplicidade, desejosos de construir um mundo melhor.
Os millenials, hoje entre 26 e 40 anos de idade, situam-se mais provavelmente entre os pós-graduandos. Eles cresceram em uma situação de forte violação de expectativas. Apesar de ganhar mais do que as gerações anteriores, a sua expectativa de ganhos e de satisfação com o trabalho é permanentemente rebaixada pela realidade. As promessas da aceleração digital, facilidade no controle da vida doméstica e realizações aquisicionais não se cumpriram, fazendo desta geração, ao contrário da geração Z, mais inclinadas a incorporar o espírito de produtivismo acadêmico.
Uma comparação possível pode ajudar a entender o choque de gerações entre os usuários de nossas bibliotecas universitárias [2] :
Geração Y (Millennials)
- representa 54% das compras online;
- 63% concluem as transações em seus smartphones;
- 22% usam aplicativos para comprar mantimentos;
- 83% não se preocupam com segurança durante as compras online;
- 60% preferem comprar marcas genéricas;
- 40% analisam avaliações e depoimentos online antes de comprar qualquer produto;
- 60% permanecem fiéis às marcas que compram;
- 81% esperam que as empresas se comprometam publicamente com causas beneficentes e de cidadania.
Geração Z
- Mais de 98% prefere fazer compras em lojas físicas;
- 66% dos compradores querem que as marcas vendam produtos de alta qualidade;
- representa 25% do tráfego total de serviços de alimentação;
- 45% escolhem marcas que são ecologicamente corretas e socialmente responsáveis;
- 61% preferem marcas que oferecem proteção e armazenamento de dados seguros;
- 43% preferem marcas que fornecem termos e condições claros de como eles usarão suas informações;
- 65% tentam aprender a origem das coisas que compram, incluindo de onde são e de que são feitas;
- menos de um terço se sente à vontade para compartilhar dados pessoais, além de informações de contato e histórico de compras;
- 44% desejam que as marcas usem realidade aumentada ou realidade virtual para aprimorar a experiência de compra.
REFERÊNCIAS
[1] "As queixas mais comuns conhecidas têm a ver com a curta cobertura cronológica dos artigos e com a dificuldade em aceder aos últimos doze meses dos periódicos, por causa dos embargos, o que já não acontece com o formato impresso". Maria Teresa Ferreira da Costa (2019). O uso de periódicos científicos electrónicos nas instituições do Ensino Superior Público em Portugal. Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Documentação e Informação.
[2] Zaninelli, Thais, et al. Veteranos, Baby Boomers, Nativos Digitais, Gerações X, Y e Z, Geração Polegar e Geração Alfa: perfil geracional dos atuais e potenciais usuários das bibliotecas universitárias. Brazilian Journal of Information Studies: Research trends, vol.x, publicação contínua 2022.)
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