Kafka é um milagre feito por multidão de leitores, defende pesquisadora

Karolina Watroba, pesquisadora da Universidade de Oxford, na Inglaterra, ganhou minha simpatia logo no começo de "Metamorfoses - Uma Investigação Sobre Franz Kafka" (Crítica, tradução de Rafael Rocca).
O livro nasceu da vontade da autora olhar para a história cultural de forma mais inclusiva, priorizando as "interações e as sobreposições entre culturas em vez de pintar um quadro de culturas separadas e trajetórias nacionais desconexas".
Para Karolina, a forma pela qual refletimos a respeito da história da literatura muda "se começamos a pensar nos livros e em seus autores como pertencentes a leitores, e não a nações". Não poderia estar mais de acordo. São os leitores que constroem a literatura.
A fim de compreender como leitores de diferentes culturas lidam com a obra de Franz Kafka, Karolina passou por alguns lugares do mundo. As cinco partes de seu ensaio levam nomes de cidades visitadas para investigar os ecos kafkianos: Oxford, Berlim, Praga, Jerusalém e Seul.
Encontramos em "Metamorfoses" formas como Kafka foi lido durante a pandemia. Quantos de nós, em algum momento, não acordamos se sentindo um bichão estranho preso dentro da própria casca enquanto o mundo se apresentava ainda mais hostil que o habitual?
O britânico Ian McEwan aparece como um dos grandes admiradores de Kafka. "A Barata" (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster), sua leitura ficcional do Brexit, é um claro diálogo com a obra do tcheco. No ensaio de Karolina, só para citar mais um exemplo, ainda compreendemos a importância do autor de "O Processo" para o poeta palestino Mahmoud Darwish, que dizia ter encontrado Kafka dormindo sob a sua pele durante o cerco de Israel a Beirute, na década de 1980.
A camada mais surpreendente do livro de Karolina é a influência de Kafka sobre a literatura coreana contemporânea. Nomes reconhecidos internacionalmente reverenciam o tcheco. Nesta lista, estão autoras como Yoko Tawada, de "Memórias de um Urso-polar" (Todavia, tradução de Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann) e Han Kang, de "A Vegetariana" (Todavia, tradução de Jae Hyung Woo), recente vencedora do Nobel.
Essa presença de Kafka em grandes nomes daquela literatura é consequência de um fascínio que nasce e cresce na segunda metade do século 20. Um dado ajuda a dar uma dimensão do tamanho do interesse dos leitores do país no leste asiático pelo autor: "O Castelo" ganhou quase 40 traduções para o coreano ao longo de quatro décadas, registra a pesquisadora.
Tratei de Kafka como tcheco. Não chega a ser um erro, mas tentar colocar o autor numa única caixinha é tarefa fadada ao fracasso, como Karolina bem demonstra em seu texto. O escritor é um exemplo dessa diversidade cultural com fronteiras porosas defendida pela autora.
Kafka nasceu numa Praga que fazia parte de um império em queda, o austro-húngaro. Quando morreu, seu lugar natal era a capital de um país, a Tchecoslováquia, que logo depois passaria viver uma relação de tensão com a União Soviética. Era um judeu não bitolado na religião. E viveu nas "franjas do mundo de língua alemã", a que usou para criar sua grande literatura.
Para Karolina, Kafka é um milagre feito por uma multidão de leitores. Bons leitores que leram suas obras, registraram suas impressões, absorveram sua influência e levaram elementos kafkianos para sua própria arte, para como enxergam e interpretam o mundo.
É algo comum a todos os grandes: um autor só se torna gigante graças à forma como ele é lido, graças aos leitores. São os leitores (não o tempo, como dizem muitos por aí) os responsáveis por fazer com que alguém ganhe a dimensão de um Franz Kafka.
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