Você iria a uma festa para ler? Só é solitário na leitura quem quer

Nos Estados Unidos, dois caras estavam incomodados. A vida social não permitia que lessem tanto quanto gostariam. Decidiram, então, chamar os amigos para momentos de leituras conjuntas. Todos no mesmo espaço, mas cada um no seu universo, cada um com o seu livro.
A ideia fez sucesso, cresceu. Virou o Reading Rhythms, projeto que promove o que chamam de festas de leituras. O primeiro evento contou com dez participantes. Hoje a dupla roda os Estados Unidos para fazer esses encontros. Às vezes, escritores renomados pintam como convidados especiais.
Outro dia, na Times Square, em Nova York, uma turma admirável compareceu a uma dessas festas, apesar da chuva chata. Bonito ver as fotos de gente com capa, manta ou sombrinha encarando o mau tempo e curtindo seu livro.
Já foram mais de 150 encontros, alguns com dezenas, outros com centenas de pessoas. A essência continua a mesma: são leitores que se reúnem para fazer companhia uns aos outros, enquanto leem em silêncio. Fazem uma pausa para trocar ideias e, depois, voltam às páginas. Finalizam discutindo algo em comum.
Ao ler a reportagem sobre os encontros no El Pais, lembrei um leitor que pediu para que eu escrevesse sobre a solidão na literatura, que acompanharia tanto quem escreve quanto quem lê. Em outro momento eu posso pensar pelo lado do escritor. Por enquanto, fiquemos com os leitores.
Há, sim, uma camada inevitavelmente solitária na leitura. Podemos estar acompanhados de um estádio cheio, mas como a palavra escrita repercute em cada indivíduo é sempre única. Falo do que acontece em nossa cabeça enquanto percorremos as páginas: o ritmo, as nossas reflexões, como enxergamos as cenas, os traços que damos para os personagens, as interpretações que fazemos.
Esse é um aspecto necessariamente individual da leitura. Depois até podemos compartilhar sentimentos e afinar ideias, mas a recepção inicial é profundamente íntima. Não solitária de todo, no entanto. Vivo muito bem acompanhado pela coleção de histórias e personagens marcantes que ajudam a dar sentido à vida.
Agora, certo clichê de leitor isolado do restante do mundo enclausurado na biblioteca, vivendo apenas entre livros e pensamentos, não faz muito sentido. Pode corresponder a um tipo muito específico e raro de leitor, mas há outros tantos. E notamos isso ao olhar para o presente e para a história.
Na Grécia Antiga, multidões participavam de grandes festivais organizados para que longos poemas fossem integralmente recitados. Milhares de anos antes de os livros ganharem a cara que têm hoje, esse povo se reunia durante dias para ouvir histórias como "Ilíada" e "Odisseia".
Muitos séculos depois, já com a literatura impressa circulando com facilidade, grandes escritores atraíam um público imenso para leituras públicas. Charles Dickens, por exemplo, fazia turnês e caprichava na teatralização para levar suas criações ao maior número possível de ouvintes.
A forma como um grego absorvia as histórias de Homero ou que um britânico imaginava as cenas criadas por Dickens era única. O contato com essas histórias, no entanto, rolava em eventos coletivos, repletos de outros leitores e ouvintes. Não era solitariamente que curtiam a literatura.
Hoje a leitura compartilhada ganha outros contornos. Clubes de leitura são espaços de trocas de ideias sobre aquilo que já foi lido, uma sociabilização após a leitura mais reclusa (conheça o da Página Cinco!). E há ações que se aproximam das festas de leitura que têm rolado nos Estados Unidos.
Outro dia, a jornalista Bárbara Bom Angelo, fez uma live para ler as primeiras páginas de "Intermezzo" e trocar ideias sobre Sally Rooney com outros leitores. Em alguns países, bibliotecas são cada vez mais espaços de encontros entre jovens. E há os sprints de leitura, espécie de versão virtual do Reading Rhythms, com um monte de gente se encontrando em lives para ler e papear.
Dá para dizer: hoje só é um leitor recluso e solitário quem quer. Não que curtir um bom livro sem mais ninguém por perto seja um problema. Gosto muito, aliás.
Outra versão desse texto foi publicada na Newsletter da Página Cinco no começo de outubro.
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