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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ainda não lê quadrinhos? Quem perde (e muito) é você

Cena de Angola Janga - Reprodução
Cena de Angola Janga Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

23/08/2021 10h35

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"Maus" é a dica mais óbvia. Finalizada no começo dos anos 90 e primeira do gênero a ser premiada com o Pulitzer, nela Art Spiegelman, um dos quadrinistas mais importantes da história, narra a trajetória de sobrevivência e difícil reconstrução da vida de um judeu que foi levado pelos nazistas ao campo de Auschwitz. O homem que não caiu apesar das atrocidades de Hitler e de seus capangas é o pai de Art, que apresenta ao leitor um personagem de admirável complexidade. Ninguém deve se deixar enganar pelos humanos representados por gatos, ratos e cachorros; o que o artista norte-americano entrega é uma obra profunda, madura e de imensa força.

Coloco "Maus" (Quadrinhos na Cia) como dica mais óbvia porque a obra sempre é citada quando a ideia é mostrar toda a potência desse universo. Pode até soar com o um papo com cheiro de mofo para gente assídua nas HQs, mas, quando escrevo a respeito, bons leitores ainda me procuram para falar que seguem distantes dos traços e balões. É uma pena, pois perdem muito.

Quadrinho é uma forma arte e, como tal, comporta um mundo infinito de possibilidades. Entre charges, tiras, gibis convencionais e narrativas bem mais longas trabalhadas em livros, encontramos diferentes tipos de histórias tratadas com incontáveis abordagens. Dá para ler uma ou duas HQs e depois dizer que não gosta da arte como um todo? Dá, mas é tosco. Seria como dizer que não gosta de literatura depois de ler apenas um livro do Nicholas Sparks, ou que não suporta cinema após assistir ao filme da Xuxa com os Trapalhões.

Literatura e cinema, aliás, são artes com as quais as HQs conversam diretamente. Mas é isso: um diálogo. Desconfie de quem tenta alardear que certos quadrinhos são obras literárias; não passa da questionável (para pegar leve) estratégia de utilizar algo já consagrado para validar e enaltecer o que ainda é visto com desconfiança por muita gente - gente que faz com que este texto ainda seja necessário.

Perseguido de forma sistemática ao longo de décadas, inclusive por governos (alô, Estados Unidos), persiste na cabeça de alguns a ideia de que o quadrinho é algo menor, feito só para crianças ou para fãs de super-heróis. Não caiam nessa. Aliás, sempre achei de uma chatice imensa tudo o que tenha a ver com os super-homens da vida. Fico com cara de paisagem quando me deparo com a discussão Marvel X DC.

Então, se você não curte quadrinhos mas não sabe muito bem o porquê (ou se apoia em porquês capengas como os já listados), incentivo: se abra para esse mundo; só tem a ganhar. Leia HQs com pegadas diferentes, de autores diferentes, de lugares diferentes, sobre assuntos diferentes, busque sacar quais as particularidades, as grandes virtudes e, claro, as limitações dessa arte. Vá com calma, mas explore, explore muito.

Com sua verve social e histórica, "Maus" não está sozinho nessa praia. "Persépolis", de Marjane Satrapi (Companhia das Letras), é um colosso do gênero que narra a vida de mulheres sufocadas pelo regime iraniano (quer fazer conexões com o Taliban? Vá em frente). "Sendero Luminoso", de Luis Rossel, Alfredo Villar e Jesús Cossío (Veneta), é um primor sobre a guerrilha e os crimes do Estado peruano.

Cena de Sendero Luminoso - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Voltando um pouco mais no tempo retratado na HQ, "Angola Janga", de Marcelo D'Salete (Veneta), um dos trabalhos brasileiros mais festejados dos últimos anos (com justiça), conta a história de Palmares. "A Mão do Pintor", de Maria Luque (Lote 42), é bem original ao retratar a Guerra do Paraguai pela perspectiva do pintor e combatente Cándido Lópes, famoso pelos seus quadros sobre a carnificina.

"Berlim", de Jason Lutes, tem a calma necessária para transmitir ao leitor a gradual corrosão da sociedade alemã nos anos que levaram à ascensão de Hitler. Já "Grama", de Keum Suk Gendry-Kim (Pipoca & Nanquim), é um baita relato a respeito das atrocidades do exército do Japão durante a Segunda Guerra Sino Japonesa.

Olhando para a não ficção, Joe Sacco é incontornável - e o seu "Palestina", livro-reportagem em HQ sobre andanças pelo país que vem sendo massacrado há décadas, está voltando às livrarias pela Veneta. A trilogia "A Odisseia de Hakim", de Fabien Toulmé (Nemo), por sua vez, é um tocante relato sobre um sírio que vê sua vida ser destroçada e, junto com o filho pequeno, vira refugiado.

Dentre histórias de vida, "Castro" e "Cash", ambas de Reinhard Kleist, uma sobre Fidel Castro e outra a respeito de Johnny Cash, saíram pela 8Inverso e merecem ser garimpadas. Vale também já ficar de olho na clássica biografia de Che Guevara feita por Héctor Oesterheld, Alberto Breccia e Enrique Breccia que está para retornar ao nosso mercado, agora pela Comix Zone.

Ainda na não ficção, mas com recortes mais pessoais e explorando viagens para lugares peculiares, temos Guy Delisle e os seus "Crônicas Birmanesas" (sobre Myanmar), "Pyongyang" (Coreia do Norte) e "Shenzen" (China), todos publicados pela Zarabatana. "Fun Home", de Alison Bechdel (Todavia), é uma das melhores representações sobre conflitos familiares e a compreensão da própria sexualidade. Já em "Retalhos", de Craig Thompson (Quadrinhos na Cia), encontramos uma história bem terna sobre amadurecimento.

Quer partir de algo realmente novo? A coleção "Narrativas Periféricas", da Mino, vale a atenção. E se a ideia é só curtir uma boa história entre amigos que tem os quadrinhos como um dos elementos mais importantes da própria narrativa, a série "Fracasso de Público" (Gal), que merece ser resgatada (ou merecia ser mais lembrada, inclusive por mim), vale muito a pena.

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