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Opinião

Protegeu marido abusador: como lidar com Alice Munro após denúncia da filha

Quando Alice Munro morreu, no último mês de maio, aos 92 anos, notei o quanto estou em dívida com a autora. Gostei muito do pouco que li de "Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento", livro que saiu por aqui pela Biblioteca Azul em 2013. No mesmo ano a canadense levou o Prêmio Nobel de Literatura.

Munro é uma mestra do conto contemporâneo, apontou a Academia Sueca numa justificativa um tanto preguiçosa para a distinção. Desde então, protelo o mergulho mais a fundo nas histórias nem tão breves assim da autora. Alguns de seus contos, pelo que me lembro, são mais longos do que certas narrativas que têm sido vendidas como romances.

Já escrevi em diversas outras oportunidades: nunca conseguimos ler tudo o que desejamos. Um livro puxa outro, um autor leva a outro, os interesses se multiplicam e o tempo segue limitado. Normal convivermos com certa frustração por nos dedicarmos menos a uma literatura do que gostaríamos misturada com a expectativa de, em algum momento, enfim perambularmos por aquele universo.

Alguns leitores que admiro curtem para caramba o trabalho de Munro. Se não desperta nenhuma sensação de urgência, isso contribui para que a escritora esteja permanentemente nesse radar de leituras futuras.

Só que agora esse encontro mais detido aguardará outro tanto.

Andrea Robin Skinner, filha mais nova de Munro, publicou um artigo no jornal The Toronto Star que provocou perplexidade no meio literário. No texto, Andrea revela ter sido abusada sexualmente pelo padrasto quando era criança. O horror começou quando ela tinha 9 anos e ele já passava dos 50.

Anos mais tarde, Andrea escreveu uma carta na qual contava para mãe os abusos que havia sofrido. Para sua surpresa, Munro reagiu como se aquilo não passasse de uma traição conjugal e ficou do lado do marido. Decidiu acobertar o abusador até a sua morte em 2013, mesmo ano em que a escritora venceu o Nobel, conta a filha.

Andrea e suas irmãs consideram que essa postura de Munro diante do crime deve fazer parte de seu legado, também precisa ser levada em conta na sua imagem perante o público. Pensando na biografia da escritora, estamos diante de uma revelação crucial, capaz de mudar radicalmente a ideia que temos de sua figura.

Mas e quanto à literatura, o que fazer numa situação como essa?

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Cada leitor que tome a sua decisão. Gente madura pode decidir por conta própria como separar ou não autor de obra. Há quem jamais misture, há quem viva com a fogueira acesa. Só é tosco quando um tenta impor ao outro uma forma única de se portar, como se qualquer coisa diferente de determinado padrão fosse inaceitável.

A denúncia de sua filha gera ranço sobre a figura de Munro, não tem jeito. Mas a obra - tão reconhecida, tão admirada - segue exatamente a mesma. Continua sendo questão de mais ou menos tempo para que eu finalmente me dedique ao que a canadense nos deixou de melhor: sua arte.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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