Truculência, mortes, golpe militar? e quadrinhos do Guy Delisle

Não é apenas para nossa tragédia que olho com bastante preocupação. Nas últimas semanas, tenho dedicado alguma atenção ao que se passa em Myanmar. Depois do breve período democrático de quase toda a década passada, os militares estão de volta ao poder na antiga Birmânia. E já voltaram fazendo o que sabem de melhor: calar divergências, sentar a porrada para levar a lógica bruta do quartel para a sociedade e massacrar civis.

Os fardados matam aos montes quem sai às ruas para reivindicar democracia. Cerca 120 pessoas foram assassinadas pelos milicos só no último final de semana. Desde o golpe, no começo de fevereiro, registrado de forma surreal em vídeo enquanto uma professora dançava em frente ao parlamento, mais 1000 jovens ou crianças foram presos e 35 foram mortos, aponta a Unicef.

Na segunda escrevi sobre livros mais leves, mas não abobalhados, que podem levar nossa cabeça para longe do nosso caos. Os quadrinhos do canadense Guy Delisle poderiam tranquilamente estar naquelas sugestões. Casado com uma ativista dos Médicos Sem Fronteiras, o artista, acompanhando a esposa, já morou em diversos cantos do mundo.

Do período em sociedades então bastante fechadas ou cindidas nasceram livros como "Shenzen - Uma Viagem à China", "Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte" (talvez o mais surpreendente deles) e "Crônicas de Jerusalém" (que se você acha que não é isolada, provavelmente é porque pensa na porção israelense, não no lado palestino).

São livros que saíram por aqui pela Zarabatana, mesma editora que publicou em 2009 "Crônicas Birmanesas" (tradução de Constância Egrejas e Claudio Martini), trabalho lançado por Guy em 2007 e no qual relata o tempo em que viveu em Myanmar. O artista esteve por lá antes do hiato democrático que houve entre a antiga ditadura militar e a a ditadura que vem sendo instaurada agora.

Guy tem um estilo humorado e um olhar atento para minúcias do cotidiano (algo nele me remete ao trabalho do francês Fabien Toulmé). Em cenas aparentemente corriqueiras que somos apresentados a hábitos dos birmaneses, seus traços culturais e religiosos, as reminiscências do período como colônia britânica e à maneira como se articula aquela sociedade entre sanções e pressões internacionais.

"Crônicas Birmanesas" é um caminho para conhecer um pouco daquele país. Olhando para a Myanmar do começo do século 21, talvez encontremos um tanto da Myanmar cheia de absurdos, arbitrariedades e truculências verde-oliva deste sangrento 2021. E não só. Autoritários e autoritarismos costumam ser muito parecidos. Saudosos de ditadura de outros cantos do mundo andam loucos para manter as populações de seus países novamente sob seus coturnos.

E já estão pisando em muita gente que, sem golpe clássico acompanhado de dancinha, ainda nem se deu conta disso.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.