Hollywood proíbe youtuber brasileiro de usar o nome 'Meu Tio Oscar'
Nome próprio, com cinco letras. É isso que está no centro de um desentendimento entre a principal associação profissional de Hollywood, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, e Felipe Haurelhuk. Na disputa entre Davi e Golias, o pequeno youtuber brasileiro — que tem cerca de 15 mil inscritos em seu canal — ficou na mira de um verdadeiro "canhão" legal. Tudo por causa da marca Oscar.
O que está acontecendo
Formado em cinema pela Universidade Federal Fluminense e fã da maior premiação do setor desde os anos 1990, Haurelhuk criou, há cerca de seis anos, um canal no YouTube para apresentar as produções que venceram o Oscar no passado, além de tecer críticas sobre os indicados do ano corrente e comentar a festa ao vivo por meio da plataforma de vídeos do Google. Para a iniciativa, escolheu o nome "Meu Tio Oscar".
"Oscar é um apelido [do Academy Awards, que é o nome oficial da premiação]", explica o cineasta. "A teoria mais aceita historicamente — nem a própria Academia sabe exatamente, com 100% de certeza — diz que um bibliotecário da Academia, na década de 1930, olhou para a estatueta e falou: 'Olha, parece o meu tio Oscar'. Por isso eu batizei o nome do canal, para fazer essa ligação histórica".
Felipe afirma não ter se atentado, naquele momento, ao fato de o apelido Oscar e a famosa estatueta dourada serem marcas registradas pela organização no Brasil desde os anos 1980, impedindo a utilização sem autorização. Ele não é o único. Na internet brasileira, outros produtores de conteúdo e jornalistas se valem do nome famoso e da silhueta da estatueta em seus produtos editoriais. Em alguns casos, podem ficar em uma área cinzenta chamada "uso justo", ou "fair use" em inglês. Porém, Márcio Gonçalves, que é especialista no assunto e foi secretário-executivo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual do Ministério da Justiça, vê problemas nessa estratégia.
O 'uso justo' só é passível de consideração quando utiliza o termo para pura e simples informação, sem que haja qualquer tipo de contraprestação em relação a isso. No caso, canais de YouTube podem ser monetizados, o que já desconfiguraria o uso justo.
Márcio Gonçalves
Na prática, há uma vista grossa para as utilizações não autorizadas, o que abriu o caminho para que Felipe Haurelhuk ganhasse uma certa notoriedade no meio cinéfilo com o nome. Em 2023, o cineasta resolveu que era hora de levar o formato para o mundo real e passou a organizar uma festa — a Meu Tio Oscar Night Experience. "É algo que os distribuidores sempre fizeram, mas que o público nunca teve acesso", justifica o youtuber. Na visão do organizador, esses eventos locais ajudam a Academia em sua busca de retomar a conexão com a audiência.
Na edição de 2024, realizada na Casa Giardini, em São Paulo, a "watch party" (como são chamadas essas reuniões para se assistir a algo em conjunto) ganhou contornos ainda maiores, contando com uma banda ao vivo e a presença de outros criadores de conteúdo que escrevem ou falam sobre cinema. O mestre de cerimônias foi Robson Nunes, ator que deu vida à versão jovem de Tim Maia na cinebiografia do cantor. Os ingressos custaram entre R$ 359 e R$ 589 e cerca de 210 pessoas estiveram presentes.
Notificação extra-judicial
Felipe Haurelhuk relata que, dias antes da realização da última Night Experience, recebeu uma carta do escritório de advocacia Kasznar Leonardos, do Rio de Janeiro, que o notificou — em nome da Academia de Hollywood — de que ele estava fazendo uso indevido do nome Oscar e da estatueta.
"Cabe alertar que o uso das marcas da notificante, sem a sua devida autorização, não é permitido sob pena de servir para diluir o poder atrativo e da fama das prestigiadas marcas", afirma o documento, ao qual esta coluna de Splash teve acesso. A notificação extrajudicial traz, ainda, diversos "prints" da divulgação da festa em São Paulo, incluindo notícias da imprensa afirmando que o evento "simula" a premiação. No final, pede que o canal pare de utilizar "qualquer associação indevida" com a Academia e "cesse, imediata e permanentemente, toda e qualquer exploração do sinal 'Meu Tio Oscar'".
Contatado, o escritório não se pronunciou sobre o assunto até o fechamento deste texto.
"Foi justo", resigna-se Felipe Haurelhuk. "Eles têm respaldo legal, então eu não tenho o que questionar em relação a isso". Contudo, o youtuber afirma que "faltou sensibilidade".
Primeiro, houve um grande problema com o timing, pois foi muito em cima da hora do Oscar deste ano. Segundo, acredito que eles não entenderam quem sou eu, o que é compreensível. Por exemplo, se eu estivesse pegando uma marca X, inclusive essa do Oscar, para tentar aproveitar de forma oportunista do evento para algum tipo de ação pessoal... Ok, tem um monte de gente que faz isso, mas não é o caso. É um projeto que vem desde 2017, cobrindo o evento, e, antes disso, tive meu estudo acadêmico sobre o assunto, participação em livros relacionados ao Oscar. Claramente não sou uma pessoa que está querendo se promover, ganhar ou usurpar a marca para proveito próprio. Acho que faltou essa sensibilidade por parte da equipe responsável pela notificação. Felipe Haurelhuk
"A questão foi a repercussão", explica Ana Roberta Lobo, advogada especialista em propriedade industrial que assessorou Felipe Haurelhuk durante a questão. "Essas empresas têm uma preocupação muito grande com propriedade intelectual, porque a marca é um bem da empresa. [...] Então, essas empresas tomam muito cuidado. Embora a sede esteja lá fora, elas têm escritórios especializados em propriedade intelectual que fazem esse acompanhamento de perto [no Brasil] para evitar esse uso por terceiros."
"Talvez tenha chamado a atenção o fato de o Felipe ter, no entendimento deles, obtido uma vantagem financeira utilizando esses sinais que são protegidos como marca. Mas tem uma outra questão também, porque não é só a vantagem financeira que a pessoa que utiliza a marca indefinidamente recebe, também é sobre o que o titular [dono] da marca deixa de receber", continua a advogada.
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Quero receberHá cerca de duas semanas, Haurelhuk desistiu da posição de Davi. O youtuber abriu mão do nome "Meu Tio Oscar" e, provisoriamente, adotou apenas o "Meu Tio". Agora, busca uma nova identidade, própria, sem interferir na propriedade intelectual de terceiros. "Até para estabelecer um bom relacionamento com a Academia, que eu pessoalmente respeito", explica.
Não é uma espécie de briga que vale a pena. [...] Eu tenho projetos, até mesmo de conhecer o museu da Academia. Tem alguns filmes que foram indicados ao longo dos tempos que não estão disponíveis em lugar nenhum, só no arquivo de filmes deles. Então, pretendo ir lá para assistir alguns, até indicados a melhor filme, e poder fazer análises das primeiras cerimônias. Assim, o embate não é algo que eu queira ter, sabe? Partir para a briga discutindo minúcias e tal... Felipe Haurelhuk
Nisso tudo, fica a lição: ainda que pareça uma terra sem lei, a internet ainda se sujeita às mesmas leis do mundo real. "É importante que se atente à utilização de marcas de terceiros", aconselha o advogado Márcio Gonçalves. "Grandes eventos como Oscar, Rock in Rio, Copa do Mundo normalmente têm seus títulos como marca registrada, podendo trazer complicações jurídicas aos produtores de conteúdo. Nossa recomendação é a de que, além de procurar por aconselhamento com advogados especializados em propriedade intelectual, evitem citar diretamente o nome desses eventos, podendo por exemplo, fazer referências gerais como 'cerimônia de premiação do cinema americano', 'festival internacional', 'competição de futebol', dentre outros"
Na prática, ferramentas de busca como o Google e plataformas como o próprio YouTube acabam incentivando o uso de nomes famosos devido a sua lógica e à forma como são utilizadas. Afinal, quem não usa aquilo pelo qual quer ser encontrado dificilmente sairá do ostracismo. "Eu não me arrependo, porque acredito que ajudou a construir o canal até hoje, né?", reflete Felipe Haurelhuk. "Hoje está se mostrando um equívoco, mas quem gosta do conteúdo e me segue pela análise que eu faço vai continuar."
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