O HAVAÍ DO KITESURFE

Como a pequena Cumbuco, no Ceará, virou a Meca do esporte no mundo e reduto de 'gringos' (que vêm para ficar)

André Martins, de Cumbuco, Ceará Fotografias de Victor Eleuterio Getty Images

Pipas das mais variadas cores e tamanhos pintam o horizonte e fazem o céu de Cumbuco, a cerca de 30 km de Fortaleza, ganhar ares impressionistas. A arte toma vida com os ventos constantes, as águas calmas e a temperatura tropical. O bairro do município de Caucaia não ostenta à toa o título de "Havaí" do kitesurfe e conquista estrangeiros do mundo todo.

A sintonia com a natureza faz o bairro cearense viver uma espécie de simbiose com o esporte: Cumbuco não seria o mesmo sem o kite, e vice-versa. Sua história é formada por pinceladas das trajetórias dos mais variados personagens, como os encontrados por esta reportagem.

As histórias que você conhece a seguir mostram que o vento não só dá vida, como também sopra de todas as direções para este recanto da modalidade.

Getty Images

A energia do Cumbuco é contagiante. A região não dá vez ao afã urbano, aflora a paz de espírito e respira o kitesurfe — mas não se limita a isso. O paraíso cearense está muito perto da capital Fortaleza, mas há uma espécie barreira invisível que não deixa a correria metropolitana invadir seus limites.

Lá, tudo parece fluir em harmonia: paisagem, atmosfera, população. O bairro em si ocupa uma faixa litorânea de pouco mais de 15 km e é cercado por areia. De um lado, a da praia; do outro, a das dunas. No meio, há uma mistura de simplicidade e beleza natural que ganha contornos cada vez mais evidentes de modernidade.

Cumbuco sempre viveu das águas, mas antes bebia de uma fonte diferente. Até poucas décadas atrás era uma vila de pescadores que atraía poucos holofotes, só que foi descoberto como a 'Meca' do kitesurfe e tudo se expandiu. Virou destino obrigatório do circuito internacional e um oásis de oportunidades.

As estradas de terra foram pavimentadas e novas ruas surgiram para dar abrigo a todos que vieram. A modesta vizinhança passou a receber casas de veraneio, pousadas, condomínios e hotéis de luxo. O comércio também se diversificou, agregando opções gourmet e de alto padrão, e caminhonetes de última geração se juntaram aos buggies e aos ônibus no fluxo de veículos que trafegam, sem trânsito, no local.

Paralelamente ao desenvolvimento crescente, a região e os moradores nutrem a preocupação de manter a essência praiana que tanto encantou estrangeiros. Uma ode constante ao carpe diem por parte do povoado, que é formado por nativos, os cumbuquenses "raíz", por brasileiros de todos os cantos e por estrangeiros dos mais variados países, principalmente europeus.

As vielas ecoam uma mescla de "cearense", português com fortes sotaques gringos e inglês, além dos idiomas dos turistas que sempre se fazem presentes. Foi essa mescla de culturas, de fato, que moldou a identidade do Cumbuco.

No Cumbuco, as preocupações se esvaem. Afinal, não é preciso nem sequer checar a previsão para saber como estará o tempo ou quais as condições do vento, basta pegar os equipamentos e ir para a praia. É a terra prometida de estrangeiros, que fogem da incerteza de seus países e se entregam à sua naturalidade.

Foi o caso de Kenny Chevalier, que deixou a Bélgica há 12 anos num rompante de coragem, veio de mala e cuia e se instalou. Campeão juvenil de snowboard na Europa, ele se rendeu à prancha do kite e aderiu à pipa. Não só se encantou com o cenário propício para a modalidade, como também pela recepção à brasileira.

"Aqui o povo também é muito aberto, muito gentil, todo mundo ajuda um ao outro. Na Europa é todo mundo por si. O povo cearense abraça, você sente em casa em Cumbuco", diz.

Trabalhando como chef, passou por outras cozinhas até idealizar seu próprio restaurante, o Chevalier, um dos mais requintados da região.

O kite que chama o povo pra cá, é o nosso sucesso. Eu só velejo aqui. Por quê? Não adianta ir para outros lugares do Brasil se você já mora no melhor lugar. Água quente, vento constante e que vem de uma direção só. É o melhor lugar"

Kenny Chevalier

Todo o bairro incorporou em sua essência o lifestyle da modalidade. Diferentemente de outros destinos esportivos, o agito no Cumbuco não começa no raiar do dia. O vento, que atua como "oxigênio" da região, tem um quê de boêmio: começa a dar as caras a partir da metade da manhã, mas engrena por volta da hora do almoço e vai até depois do pôr do sol.

Durante o dia, a ação se divide entre o mar e a Lagoa do Cauipe, os dois points para a prática do kite, mas é no centrinho onde está o coração do Cumbuco. Foi lá onde tudo começou e é onde a vida pulsa, girando a economia e movimentando as badaladas noites no local.

A maioria dos gringos vem para Cumbuco pelo kite, mas há também os casos que contam com um aceno da sorte. Foi o caso do pai de Débora, o holandês Willem Jan Roor, que tinha um roteiro de viagem curioso: ele definia seus destinos seguindo ordem alfabética. Há mais de 20 anos, a viagem que faria para Cuba foi cancelada de última hora, e o local seguinte com a letra C era, justamente, o paraíso cearense.

Ele desembarcou e se apaixonou, tanto pela região quanto pela mãe de Débora, que fazia massagens na praia. O caminho deles se cruzou nas areias do Cumbuco. Foi o sinal que precisava para deixar sua cidade na Holanda e abraçar a liberdade cearense.

Willem entrou para o universo do kite, criou uma família e virou cumbuqueiro — até adotou um nome abrasileirado: Guilherme. Decidiu então abrir o Laranja Mecânica, bar pioneiro no centrinho do Cumbuco. O estabelecimento rústico era ponto de encontro nas noitadas e virou um símbolo na região.

Foi no Laranja Mecânica onde Débora cresceu e onde também a grande maioria da cidade cultivou memórias ao longo dos anos, até que uma intimação determinou a derrubada da construção. Estava muito próxima da praia.

Na época, o pai de Débora já havia sofrido um AVC e não quis se despedir do Laranja, como era carinhosamente chamado. Morreu um ano depois. Hoje, a filha carrega o legado familiar e planeja reabrir o estabelecimento, mantendo a história correndo nas veias do Cumbuco.

Ele nunca ensinou holandês para a gente porque ele não queria que tivéssemos interesse em ir para lá. A paixão dele era Cumbuco, viu aqui a oportunidade que jamais teria na sua terra. Cumbuco é o pacote completo e eu sinto que isso também apaixona os estrangeiros. Eles vêm para velejar e encontram uma galera muito receptiva e um lugar tranquilo"

Débora Jan Roor

O Havaí do kitesurfe foi o refúgio encontrado há duas décadas por Boris Grah. Natural do que hoje é a Eslovênia, ele mal tinha atingido a maioridade quando se viu no meio da guerra civil na antiga Iugoslávia.

Sobreviveu após três anos de confronto e, na primeira oportunidade que teve, trocou a arma pela prancha e pela pipa. Descobriu o kite e se apaixonou. Fez viagens pela Europa e pela África até que o destino, inevitavelmente, o levou para Cumbuco. Chegou ao paraíso cearense por causa do vento, mas ficou pelo conjunto.

Assim que pisou no Cumbuco, Boris pediu para avisarem sua mãe que não voltaria. Queria viver um sonho de infância: acompanhava desde pequeno a cultura brasileira pela forte conexão de seu país com o futebol e ansiava por conhecer o Brasil. Não conseguiu jogar bola com Ronaldinho ou com Pelé, mas estabeleceu raízes na terra pentacampeã.

"O Brasil salvou minha vida, me deu a oportunidade de me levantar. Perdemos tudo lá na guerra. Para nós, não tinha nada", conta.

Ele penou para se adaptar e rodou por trabalhos até virar chef de cozinha. Abriu seu próprio negócio, o Secret Spot, um restaurante à meia-luz com pinturas fluorescentes nas paredes que dá um toque intimista ao local. A sua contribuição para a região que o acolheu.

Fui um dos primeiros kitesurfistas daqui. Hoje em dia é trabalho, kite, trabalho, casa. Me apaixonei tanto no esporte que esse lugar virou mágico para mim, sou totalmente viciado. Eu não conseguiria voltar para minha terra. Cumbuco é o paraíso"

Boris Grah

Cumbuco acolhe a todos e não é muito chegada em despedidas. Talvez seja por isso que quem vem dificilmente quer ir embora. O kite move a região e é o responsável por atrair pessoas até mesmo indiretamente, como foi com a romena Iulia Hager.

Ela desembarcou no Brasil há uma década para viver com seu esposo, um brasileiro que conheceu nos EUA quando estudava relações públicas. Mudou por aqui para o ramo da hotelaria e rodou o país até receber, dois anos atrás, a oportunidade de virar gerente geral do Carmel Cumbuco, resort cinco estrelas da rede hoteleira de luxo Carmel, conhecida por agregar requinte mantendo a vibe característica de cada região.

Iulia não conhecia Cumbuco nem nunca havia praticado kitesurfe, mas logo se entregou ao esporte e ao povoado. A imersão no recanto das pipas faz com que esse processo fosse praticamente inevitável. A orla da praia é repleta de escolas de kite e o próprio hotel que ela comanda tem instrutores exclusivos para os hóspedes-kitesurfers de primeira viagem, aluguel de equipamentos para os mais experientes e pacotes que incluem clínicas para imersão no kitesurfe durante a estadia.

O esporte, embora complexo no primeiro momento, abraça a todos os praticantes independentemente de físico ou idade. Hoje, Iulia não se imagina em outro lugar e já se arrisca velejando pelas paisagens paradisíacas. Tem, inclusive, um filho pequeno que enche o peito para falar que é brasileiro e que conta as horas para virar atleta de kitesurfe.

Vim para o Cumbuco antes de saber que aqui é a Meca do kitesurfe. É um esporte totalmente diferente. Parece, mas não é agressivo, é muito fino. Para mim, não faz sentido morar em outra cidade no Brasil"

Iulia Hager

A internacionalização do Cumbuco reflete diretamente na população local, que passou a ver no kite um meio de vida. Enquanto muitos nativos se sustentam com atividades ligadas ao turismo, outros trilham carreira no esporte.

Weslley Silva é um dos atletas da promissora safra da região, que vem conquistando espaço e já possui campeões mundiais. Ele decidiu logo cedo que queria viver do kitesurfe, mas esbarrou na falta de acesso. Sem condições de arcar com os caríssimos equipamentos, começou sua carreira como ajudante de estrangeiros que vinham velejar. Passou a praticar, assim como a esmagadora maioria dos atletas cumbuqueiros, com pranchas e pipas doadas pelos gringos.

"Se não fossem os estrangeiros, acho que a gente não praticaria kite, porque o equipamento é muito caro e é de fora do Brasil. Os gringos vinham e às vezes não compensava eles levarem de volta, e doavam para a galera ou vendiam com preço bem melhor. Para comprar um kite seminovo em bom estado atualmente fica em torno de R$ 4 mil. E um novo é de R$ 9 mil em diante", diz.

Entre os moradores, quem dominava o kite ensinava aos demais. Weslley pegou a manha rápido, foi subindo seu nível ao longo dos anos e decidiu que seguiria carreira. Virou instrutor da modalidade para ajudar a pagar as contas.

Conseguiu se profissionalizar, viajou pelo Nordeste e agora mira explorar o mundo disputando campeonatos. Mas ele já conhece o melhor lugar para a prática do kite. Afinal, no universo da modalidade, todos os caminhos levam ao vilarejo cearense.

Inclusive, a fama conquistada pela região gerou uma mobilização local nas redes, que emplacou e virou até arte na rua: "Cumbuco é melhor que a Disney". E quem visita, concorda.

Pessoas vêm do mundo inteiro só para aprender, praticar e treinar. O kite sem o Cumbuco não seria a mesma coisa, e o Cumbuco sem o kite também. É o melhor lugar do mundo, com certeza"

Weslley Silva

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