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Rafael Ramos: como foi a carreira do lateral antes de chegar ao Corinthians

Rafael Ramos, lateral do Corinthians, dá entrevista no Beira-Rio, após acusação de injúria racial por Evanílson - MAX BECHERER/DIA ESPORTIVO/ESTADÃO CONTEÚDO
Rafael Ramos, lateral do Corinthians, dá entrevista no Beira-Rio, após acusação de injúria racial por Evanílson Imagem: MAX BECHERER/DIA ESPORTIVO/ESTADÃO CONTEÚDO

Bruno Andrade

Colaboração para o UOL, em Lisboa

20/05/2022 04h00

Rafael Ramos desde cedo foi ensinado a transformar a revolta interna e as decepções em determinação e superação. Preso em flagrante na semana passada ao ser acusado de injúria racial pelo volante Edenilson, do Inter, o lateral-direito português do Corinthians, 27, lidou com a até então maior frustração da vida antes mesmo de atingir a maioridade, quando foi dispensado do Sporting, onde chegou com apenas 12 anos.

Poucos meses depois de ter recebido os pais para morar em Lisboa, que resolveram deixar a modesta Seia, com cerca de 25 mil habitantes, Ramos, que fez parte da formação como atacante, precisou procurar um novo clube. Zangado e, principalmente, pressionado com a chegada da família, teve aos 17 anos que dar um passo atrás na recém-começada trajetória no futebol.

Enquanto o pai trabalhava em um restaurante dentro do Estádio da Luz, que pertence ao Benfica, o jovem lateral foi aconselhado por um profissional dos rivais encarnados a tentar a sorte no Real Sport Clube, mais conhecido como Real Massamá, um tradicional time da região metropolitana da capital portuguesa. Inicialmente, chegou para ser reserva no time sub-19.

"Foi duro para o Rafael compreender do ponto de visto psicológico tamanha mudança. Estava destruído mentalmente, mas, ao mesmo tempo, disposto a provar que o Sporting tinha errado com ele", revelou Filipe Antunes, antigo auxiliar do Real Massamá e hoje na comissão técnica do Estrela da Amadora, ao UOL Esporte.

"Certa vez, chegou ao treino todo revoltado, porque havia tido algum problema com a moto. Estava sem foco e incomodado. Num determinado exercício, deu um chutão na bola e precisou ser repreendido. Sentamos e conversamos, explicamos que era preciso transformar toda aquela raiva em coisas positivas. Felizmente, ele sempre teve humildade para assimilar e aceitar", completou.

Rafael Ramos 2 - Marcello Zambrana/AGIF - Marcello Zambrana/AGIF
Contratado pelo Corinthians a pedido de Vitor Pereira, Rafael Ramos estreou diante do Avaí, no dia 16 de abril
Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Um dos subterfúgios que Rafael Ramos encontrou para "descarregar" a raiva foi treinar acima daquilo que era pedido, especialmente na academia. Puxar peso. Fisicamente propenso a ganhar massa muscular —até por isso era chamado na infância de "Rochemback", em alusão ao ex-volante brasileiro Fábio Rochemback, que defendeu Inter, Grêmio, Barcelona e Sporting—, acabou proibido de exagerar nas atividades extras.

O veto aconteceu no Real Massamá e também no Benfica, onde, depois de dar a volta por cima nas divisões inferiores, Ramos seguiu para jogar na temporada seguinte. Participou do time sub-19 que foi vice-campeão da Youth League, a Liga dos Campeões da categoria —perdeu a final para o Barcelona, por 3 a 0.

Posteriormente sem espaço na equipe B dos encarnados, visto a evolução do concorrente Nélson Semedo, ex-Barcelona e atualmente no Wolverhampton e na seleção portuguesa, o agora camisa 21 do Timão rumou à MLS (Major League Soccer), juntamente com o companheiro de Benfica e Estrela, um meio-campista angolano.

Os conselhos de Kaká

Foi nos Estados Unidos que Rafael Ramos jogou a maior parte da carreira: cinco anos. Começou no Orlando City em 2014, sendo "apadrinhado" pelo ídolo e craque brasileiro Kaká, que, sempre que preciso, fazia também o papel de irmão mais velho e conselheiro.

"Como era jovem [20 anos], não conseguia controlar muito bem as minhas reações. O Kaká conversava comigo e me tranquilizava. Me dizia como reagir em determinadas situações", contou o próprio Ramos, em entrevista ao site Maisfutebol, em 2015.

Depois de três temporadas em Orlando, o jogador português acabou negociado com o Chicago Fire, onde atuou ao lado de outro astro internacional, o alemão Bastian Schweinsteiger.

Após uma rápida passagem pelo Twente, então na segunda divisão da Holanda, Ramos voltou para Portugal. Acertou em 2019 com o Santa Clara. Nos Açores, uma ilha a quase 1.500 km de distância do continente, o lateral-direito ganhou a tão sonhada notoriedade, entrando no radar de Vítor Pereira, o técnico e seus auxiliares, que indicaram ao clube alvinegro sua contratação. Porém, mantendo a característica de sempre: ser "refilão", que, em português de Portugal, entre outras coisas, significa reclamar com frequência.

Rafael Ramos - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Rafael Ramos em ação pelo Santa Clara, time que defendeu entre 2019 e 2022
Imagem: Reprodução/Instagram

Dos principais destaques do time açoriano entre 2019 e 2022, o lateral, de origem ofensiva, passou a trabalhar melhor a parte defensiva no regresso ao país de origem. Ainda levando um e outro puxão de orelha, virou um jogador "equilibrado" nas mãos do treinador português Daniel Ramos.

"Tem uma boa relação defesa-ataque e ótima propensão ofensiva. Quanto mais liberdade tiver em campo, maior vai ser o envolvimento dele com o ataque. Mas também tem compromisso defensivo. É muito equilibrado nos processos. Tem um vaivém forte, perde pouca bola na construção, então gera fluidez ao jogo e proporciona posse ao time. Não chega a ser um jogador virtuoso, mas é bastante consistente nas combinações", explicou Ramos, cujo último trabalho foi no Al Faisaly, da Arábia Saudita, ao UOL Esporte.

Em manutenção

Apesar de mais experiente, Rafael Ramos nunca apagou de vez o lado "reclamão" no dia a dia, sobretudo nos treinos, quando precisava provar que estava à frente do concorrente de posição e melhor amigo no elenco, o senegalês Pierre Sagna.

"Tem uma certa irreverência, estava sempre a chutar cones quando errava (risos). Ele se cobra muito, quer ser sempre o melhor. O Rafael compete com ele próprio. Antes da minha chegada, ele era um jogador refilão e impulsivo. Respondia muito, cobrava bastante, chutava mesmo o balde? Isso então foi uma guerra que acabamos por vencer. Trabalhamos muito isso. Transformamos a irreverência dele em coisas positivas. Está muito melhor hoje, sem dúvida. Continua irreverente, mas muito mais responsável", destacou Daniel Ramos.

"É um ser humano nota dez. É muito bom colega, procura ter uma ótima relação com todos. É simples e respeitador, de fácil trato. No geral, é uma pessoa muito pura. Exatamente isso: puro. Tem dúvidas? Questiona. Sente que há algo errado? Reclama. Quanto mais ele se sentir importante e acarinhado, mais sucesso vai ter no Corinthians", completou.

Rafael Ramos 3 - Rodrigo Coca / Ag. Corinthians - Rodrigo Coca / Ag. Corinthians
Rafael Ramos em ação em um treino do Corinthians: lateral de 27 anos virou opção para a posição de Fagner
Imagem: Rodrigo Coca / Ag. Corinthians

Depois de tantos treinadores portugueses, agora é a vez de um jogador de origem portuguesa tentar brilhar no Brasil. O árduo caminho, no entanto, não depende agora apenas do rendimento dentro de campo. O resultado das investigações policiais com base na acusação de racismo vai determinar o destino de Rafael Ramos do outro lado do Oceano Atlântico.

O caso

Internacional e Corinthians jogaram no sábado passado (14), em Porto Alegre. Em campo, o meio-campista Edenilson, do time da casa, acusou ao árbitro Braulio da Silva Machado uma injúria racial por parte de Rafael Ramos. O protesto foi registrado em súmula, documento que serviu como base para prisão em flagrante do jogador português, antes mesmo de o jogador do Inter prestar queixa.

Na súmula, Braulio descreveu assim o que ouviu dos jogadores: "Aos 31 minutos do segundo tempo, no momento em que a partida estava paralisada, fui informado [por Edenilson] que seu adversário [Rafael Ramos], havia proferido as seguintes palavras para ele: 'Foda-se, Macaco'. Neste momento paraliso a partida e chamo os jogadores envolvidos para relatarem o que havia acontecido. Rafael Ramos afirma que houve um mal-entendido devido ao seu sotaque (português) e diz ter proferido as seguintes palavras: 'Foda-se, caralho'."

No Instagram, Edenilson disse que "sabe o que ouviu" e que "foi a primeira vez que isso aconteceu" com ele. "Me incomoda o fato de ficar chamando atenção de outra forma que não seja jogando futebol: ser xingado pelo tom da minha pele", disse. "Procurei o atleta para que ele assumisse e me pedisse desculpas, afinal, todos erramos e temos o direto de admitir, mas o mesmo continuou a dizer que eu havia entendido errado. Eu não entendi errado."

Rafael Ramos, que teve fiança paga ainda durante a noite da partida no Beira-Rio, afirmou que a denúncia feita por Edenilson teria sido "puramente um mal-entendido". "Estou aqui de consciência e cabeça limpa para explicar o que acontece. No fim do jogo fui ter uma conversa com ele, tivemos uma conversa tranquila. Expliquei o que tinha acontecido, ele explicou o que tinha entendido. Expliquei a verdade. Ele mostrou receio de passar por mentiroso, e expliquei a ele que ele não é um mentiroso, que apenas entendeu errado. Apertamos a mão, e desejo boa sorte a ele", afirmou.

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Rafael Ramos e Edenilson durante a polêmica ocorrida no duelo Inter x Corinthians, no Beira-Rio
Imagem: Silvio Avila/Getty Images

A investigação da acusação de injúria racial é conduzida pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, que já pediu no início da semana imagens do momento em que Rafael Ramos teria cometido o crime contra Edenilson.

Na quarta-feira passada (18), o Plenário do Senado aprovou projeto de lei (PL 4.566/2021) que aumenta as penas por crime de injúria racial em eventos esportivos. Atualmente, o Código Penal estipula a pena de um a três anos de detenção. O texto pede elevação do período para dois a cinco anos. O PL foi direcionado à Câmara dos Deputados.

Ao UOL Esporte, a delegada Ana Caruso, da 2ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, disse que o inquérito se baseia em indícios de que o lateral-direito teria praticado injúria racial. Caberá ao Ministério Público, então, proceder ou não com a denúncia.

Por sua vez, o STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) solicitou também nesta semana a abertura de inquérito o pedido da Procuradoria da Justiça Desportiva para apurar a denúncia. Caso seja acatada, o jogador irá a julgamento, podendo receber uma suspensão. De acordo com o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), a pena é de suspensão de cinco a dez partidas, além de multa de R$ 100 a R$ 100 mil.