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Especialistas debatem impacto da pandemia no futuro do futebol brasileiro

Homem segura bola de futebol para ilustrar a pandemia de coronavírus - Jarry S/Getty Images
Homem segura bola de futebol para ilustrar a pandemia de coronavírus Imagem: Jarry S/Getty Images

Thiago Fernandes

Do UOL, em Belo Horizonte

23/06/2020 13h00

A pandemia causada pelo novo coronavírus afetou todas as áreas do setor esportivo e causará perdas significativas que colocam em xeque diversos aspectos e costumes que, há muitos anos, são praticados no futebol. Na Europa, por exemplo, região mais rica da modalidade no planeta, o impacto financeiro da Covid-19 vai girar em torno de 4,1 bilhão de euros.

No Brasil, a consultoria Ernst & Young estima que os 20 clubes mais bem colocados no ranking da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sofrerão perdas somadas de ao menos R$ 2 bilhões em 2020.

Com estes números diversas dúvidas acerca do futuro do futebol no país. Assuntos que eram tratados em destaque antes de pandemia como o modelo de clube-empresa e a gestão de programas de sócio-torcedor ganham ainda mais relevância, e novas práticas de marketing e captação de receitas são discutidas no setor como solução para conter danos.

Planejamento com perdas financeiras

O relatório da E&Y aponta que, com a pandemia, as 20 agremiações, que faturaram R$ 6 bilhões ao todo em 2019, terão uma retração entre 22% a 32%. No entanto, o cenário pode ser ainda pior já que as datas ainda são incertas e a paralisação pode se estender. A análise considera que o retorno das partidas aconteça no mês de julho, além de que tanto Brasileirão como Libertadores sejam concluídas até o fim do ano sem público.

O executivo de futebol Rui Costa, que tem passagens por Grêmio, Chapecoense, Atlético-PR e Atlético-MG, explica que diversos clubes grandes passarão a trabalhar com orçamentos de médios e médios como pequenos. A tática fundamental para o novo período que se aproxima é a honestidade: "Vai ser necessário um choque de honestidade. As estratégias precisarão ser repensadas, mas as cobranças por resultados serão as mesmas. Nenhum dirigente vem a público dizer que não vai disputar títulos. Para evitar ainda mais problemas, será preciso deixar claro quais as pretensões para o restante a temporada em um cenário de possibilidades concretas".

Clube-empresa para evitar falências

Diante das perdas financeiras catastróficas na pandemia, o advogado especializado em direito desportivo, Eduardo Carlezzo, explica que o impacto no futebol brasileiro é um "tsunami", a partir do momento em que clubes de primeira, segunda e terceira divisão são absolutamente alavancados em dívidas no atual modelo societário que, segundo ele, é baseado no cooperativismo, muito bem representado pelos conselhos deliberativos.

Para Carlezzo, a resolução dos Projetos de Lei nº 5.082/16, aprovado na Câmara dos Deputados, e nº 5516/19, em discussão no Senado, que abordam a transformação da gestão associativa dos clubes para o molde empresarial, pode evitar uma falência generalizada após a pandemia.

Já passou o momento de buscar soluções definitivas para essa estrutura e modelo. O futebol mudou, a sociedade mudou, as empresas mudaram e os clubes continuam sendo associações sem fins lucrativos que geram dívidas e despesas. O fato é que não vai chegar dinheiro novo no futebol brasileiro no modelo atual. A única forma de buscarmos investidores será a transformação no modelo de clube empresa. Essa pandemia tem que fazer com que o congresso nacional, representado pelo Senado, aprove urgentemente o projeto. Uma lei nunca vai ser perfeita e, fatalmente, essa não agradará a todos. Temos que dar para os clubes que querem migrar para esse modelo uma base jurídica para realizar a transição", explica.

Adalberto Baptista, presidente do Conselho de Administração da S/A do Botafogo-SP, vê a situação sugerida por Eduardo Carlezzo como a melhor possibilidade neste momento. Ele crê que a mudança para clube-empresa é um 'caminho sem volta' no Brasil.

"A transformação dos clubes em S/A é um caminho sem volta na minha opinião. Não se trata de algo simples de fazer acontecer. Essa separação das chamadas associações - formada ainda pelos conselhos, de uma gestão empresarial, significa uma mudança drástica de paradigmas. Mas eu não tenho dúvida que essa profissionalização para clube-empresa é um caminho que pode e deve salvar as agremiações principalmente nesse período de pandemia. Os clubes que conseguiram avançar com esse projeto vão certamente colher os frutos mais cedo", afirmou.

Inovação no marketing e busca por novas receitas no digital

Um levantamento feito pela consultoria Two Circles aponta que apenas 53% dos eventos esportivos previstos para 2020 serão realizados. A crise financeira e o novo cenário que se desenha no futebol e deve permanecer por algum tempo, para muitos especialistas, fará com que o marketing ganhe ainda mais força no futebol.

"Ainda é preciso entender como a economia vai se comportar conforme o tempo passa, no entanto, a sociedade vai mudar e atravessaremos várias etapas. O fato é que tudo, a partir de agora, precisará ser pensado no ambiente digital. Quando o futebol voltar, será sem público, e a TV e a internet se tornarão fundamentais para a marca ser valorizada. Vale sempre lembrar que o fã continua atrás do clube e o patrocinador continua querendo aparecer, então inovar é preciso", aponta Gustavo Herbetta, fundador e diretor de criação da agência de marketing esportivo da Lmid, e que já foi superintendente de marketing do Corinthians entre os anos de 2015 e 2017.

Na opinião de Bruno Maia, ex-vice-presidente de Marketing do Vasco da Gama, CEO da 14, agência de conteúdos estratégicos e digital, e especialista em negócios e novas tecnologias no esporte, haverá um aumento dos investimentos dos clubes na produção de conteúdo original e também por players de streaming.

"A demanda reprimida ficou clara neste período. Há espaço para vivermos futebol de mais maneiras, além dos jogos ao vivo. Temos um ano de eleição em alguns clubes importantes e é uma chance real de ouvirmos novas propostas dos futuros dirigentes que estejam mais alinhados com uma estratégia real de gestão de dados dos consumidores que eles têm na mão. Transformar o mero torcedor em um fã, alguém que você sabe quem é e que consome e tem uma relação mais efetiva no negócio do clube", complementa.

Estádios vazios mudam o jogo dentro de campo

O retorno do público aos estádios também é um incógnita. Na Europa, grandes ligas como, por exemplo, a espanhola, ainda estudam a presença de torcedores nas arenas nesta temporada. No entanto, nada é definitivo. No Brasil então a possibilidade no momento não é nem discutida.

Deixando de lado a iminente perda de receitas que envolvem o matchday, o presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, afirma que a ausência do público nos estádios não vai apenas afetar o lado financeiro, mas o próprio jogo como conhecemos: "Não há previsão, em curto e médio prazo, de jogos com venda de ingressos. Com portões fechados a mudança será direta, já que historicamente clubes mandantes vencem mais os seus jogos. Podemos citar como exemplo a Bundesliga, que retornou com portões fechados e têm tido um aproveitamento melhor de times visitantes. Além disso, o ambiente sem público influenciará na arbitragem, já que é diferente para o juiz apitar em um estádio vazio onde ele poderá ter mais tranquilidade para tomar suas decisões", aponta.

Na Bundesliga, citada por Paz, em cinco rodadas sem público foram 21 vitórias para os visitantes, 14 empates e apenas 10 vitórias para os mandantes.

Mais desafios para engajar sócio-torcedor

Os últimos cinco anos representaram um salto gigantesco no lucro e no peso que os programas de sócio-torcedor geram para clubes do Brasil. Esses programas tiveram faturamento de R$ 390 milhões nos times da Série A em 2018. O valor representa um incremento de 42% na comparação a 2014. É quase 8% dos pouco mais de R$ 5 bilhões em recursos obtidos por essas equipes há dois anos, de acordo com o levantamento de André Monnerat, diretor de negócios da Feng Brasil, empresa especializada em programas de sócios e engajamento de torcedores, que atende clubes como Flamengo, Vasco e Santos.

O Campeonato Brasileiro 2019, por exemplo, que registrou a segunda maior média de público da sua história - 21.230 torcedores por partida - teve 51% do público pagante da competição formado apenas por sócios. Por isso, a pandemia surge como um aviso para diversos clubes que, naturalmente, encontram dificuldades para manter sua base em meio à paralisação dos jogos.

"Os clubes precisaram apostar muito no apelo emocional, tanto na criação de peças de comunicação quanto nas ações para motivar o torcedor a seguir sócio, e perceberam que é possível ter bons resultados desta forma. Na verdade, o produto "sócio-torcedor" sempre teve esta dimensão intangível, mas muitos acabam pensando apenas no lado tangível - os benefícios concretos - na hora de desenhar seus planos e campanhas, quando na verdade mesmo estas entregas só se tornam realmente atraentes quando o torcedor sente o quanto sua paixão pelo time é parte importante de quem ele é. É preciso manter esse esforço na ligação da identidade do torcedor, mesmo quando voltar a ser possível entregar vantagens nas partidas", afirma Monnerat.

Categoria de base como divisora de águas

Não é novidade dizer que o Brasil é uma fonte rica de talentos no futebol. De acordo com um estudo apresentado pelo Observatório do Futebol do Centro Internacional de Estudos Esportivos (CIES) em abril, o país é o que mais exporta jogadores de futebol no planeta. No ranking organizado pela entidade são 1,6 mil representantes no exterior, neste ano, sendo que 74,6% deles atuam em clubes de primeira divisão.

Dado o potencial revelador do Brasil, Júnior Chávare, coordenador das categorias de base do Atlético-MG, acredita que a base tem o poder de salvar o futebol brasileiro pós-pandemia se feito de maneira planejada.

"Com o futebol parado, o momento é de reflexão para nós do quanto a base será um divisor de águas para quando o futebol voltar ao normal. Não tenho a menor dúvida. Quem já tem o trabalho estruturado nas divisões de base vai trilhar o caminho com muito menos dificuldade, porque o dinheiro não vai sobrar. Queremos os melhores dentro e fora de campo, privilegiando sempre a lapidação e revelação desses meninos, sem focar em conquistas. A partir do instante que você forma grandes elencos, ambos surgem naturalmente. É o que buscamos atualmente no Galo", explica Chávare, que também acumula passagens de sucesso por Grêmio e São Paulo, além de ter sido consultor da Juventus (ITA).

Além de montar elencos fortes a partir da base, a venda de jogadores para o exterior, uma das receitas mais importantes do futebol brasileiro, também é uma saída. O Flamengo, atual case de sucesso do país, por exemplo, movimentou mais de R$551 milhões com vendas de jogadores formados na base em menos de três anos.