Até agora vimos que o regulamento da F-1 mudou radicalmente naquela temporada de 1994, que o modelo FW16 da Williams de Senna era muito difícil de ser pilotado e que nas duas primeiras etapas do campeonato, Brasil e Aida, no Japão, o piloto, grande favorito a ser campeão do mundo, não havia marcado um único ponto. Em contrapartida, seu principal adversário, Michael Schumacher, da Benetton, vencera as duas primeiras etapas da temporada.
No capítulo anterior já entramos no GP de San Marino, onde descrevemos o clima de tensão que envolvia Senna. Pelas dificuldades com o FW16, a falta de resultados e o seu momento pessoal, assumindo a responsabilidade de vários e importantes negócios.
Logo depois do primeiro treino livre da prova em Ímola, sexta-feira, Senna teve o momento de menos tensão no fim de semana. O carro estava melhor. Adrian Newey permaneceu em regime de clausura, na Inglaterra, estudando o que poderia fazer para poder adotar um suspensão menos rígida no FW16 sem, contudo, perder eficiência aerodinâmica.
"O aerofólio dianteiro é um pouco diferente e temos uma nova geometria de suspensão dianteira", explicou o piloto. Como não exigira tudo do equipamento, por tratar-se do primeiro treino livre, a avaliação não era conclusiva: "Tenho a impressão de que o carro está menos crítico", nos disse.
Mudança fatal
Senna pôde a partir daquele momento, também, trabalhar melhor as mãos e os braços na condução. O volante do modelo FW16 havia sido abaixado poucos centímetros e agora ele não batia mais as mãos nas paredes do cockpit, ao lado do volante. "Ficou melhor", limitou-se a dizer Senna. Raramente ele dava detalhes do que havia sido feito no carro. Quando ele contou o que Adrian Newey fez no FW16 surpreendeu quem ouviu. Tudo para Senna era "segredo estratégico".
Jamais ouvi dele qualquer coisa minimamente mais profunda sobre o carro, as novidades, por exemplo, e sabemos que muito do seu desenvolvimento era orientado por ele mesmo, portanto Senna conhecia como poucos os novos componentes do seu monoposto e que objetivos tinham.
Pausa para o almoço, entre a sessão livre da manhã e a classificatória à tarde. Naquela época havia treino de definição do grid na sexta-feira e no sábado.
A concentração de Senna para sair daquela situação de desvantagem diante de Michael Schumacher e da Benetton era total. Suas declarações eram quase sempre monossilábicas, sinal típico de que estava focado em algo maior. Senna era assim: uma série de comportamentos denunciava o que ele buscava.
Lembro-me uma vez de ele nos contar uma história: "Quando vocês me virem inclinando o capacete para o lado de dentro das curvas, saibam que tanto eu como o carro estamos no limite ". Outra senha era a sua reação com poucas palavras. Se ele dissesse apenas sim ou não, ou até nem respondesse, então alguma coisa o incomodava. Naquele GP, especificamente, já vimos que eram muitas coisas que o perturbavam e não uma só.
Desde 1987, cubro profissionalmente as corridas de F-1 como jornalista, apesar de apenas a partir de 1991 passar a segui-las de forma regular, indo a quase todas as etapas. Tive apenas duas chances de conversar com Senna de forma mais profunda, informal. Abordar temas que não fossem relativos ao automobilismo.
Uma delas foi num voo de volta de Barcelona para o Brasil, em 1992, e a outra na temporada seguinte, em Miami, no escritório de um amigo dele, Tony, dono de uma loja de produtos eletrônicos. Regressávamos do Canadá. Ah, uma ocasião também na Inglaterra, em Silverstone, numa quinta-feira de fim de semana de GP, em 1990.
Fora disso, os contatos foram sempre apenas profissionais. Senna mantinha relações de amizade mesmo, capaz de dividir suas intimidades, com pouca gente. Uma dessas pessoas era Galvão Bueno. No último capítulo dessa nossa conversa, vou contar um pouco mais sobre a empatia que existia entre Senna e Galvão Bueno. O narrador era o "papagaio", segundo o piloto, por ele "falar demais". Mesmo numa situação por demais triste, dentro do avião que trazia o corpo de Senna de volta ao Brasil, ao nosso lado.
O clima de apreensão para Senna no GP de San Marino cresceu ainda mais no começo da sessão de classificação da sexta-feira à tarde. Logo no início do treino, as imagens nas TV do circuito focalizaram um carro com as rodas para cima, em um local ainda não identificável.
Quando um monoposto capota, há sempre uma tensão natural pelo fato de a cabeça do piloto, apesar do "santantônio", dianteiro e traseiro, estar exposta. Não dava para saber quem se acidentara tão feio. O santantônio é uma barra que se destina a proteger a cabeça do piloto no caso de capotamento. Na F1, a tomada de ar, acima da cabeça do piloto, exerce essa função.
Em seguida, a TV expôs o VT do que se passara. Era Rubens Barrichello, jovem piloto brasileiro de 21 anos, tido na F1 como um talento nato àquela altura. O seu voo na Variante Baixa foi de assustar. Desacordado, nos instantes iniciais do socorro médico, as consequências pelo ocorrido sugeriam ser graves.
Todo mundo na F1 temia o brusco corte nos recursos eletrônicos naquela temporada. "É um risco tornar os carros menos guiáveis sem diminuir a potência dos motores", afirmou, na época, o ainda bem conceituado projetista John Barnard, autor de carros campeões na McLaren e criador de várias soluções técnicas ainda hoje empregadas na F1, como o pioneirismo na utilização dos materiais compósitos, a exemplo da fibra de carbono.
Aquele acidente com Rubinho levantara de imediato a questão. Senna, como muita gente no paddock, foi até o ambulatório médico instalado muito próximo de onde Rubinho bateu, antes do primeiro box. Eu estava a uns 20 metros da entrada, no limite da área isolada pelos organizadores, quando vi Senna passar por mim indo em direção aos médicos.
Sua expressão era muito tensa. Caminhava rapidamente. O dono da equipe Jordan, o irlandês Eddie Jordan, passara por ali instantes antes e pude ouvi-lo dizer a Geraldo Rodrigues, empresário de Rubinho, para telefonar para o pai do piloto, a fim de avisá-lo do acidente.
Até então se imaginava que algo de mais sério teria acontecido com Rubinho, afinal, ele bateu a cerca de 200 km/h no muro, com o carro voando sobre os pneus. Não demorou muito, uns 10 minutos, e Senna deixou o ambulatório rapidamente. Ele tinha os olhos visivelmente marejados.
Eu já havia vivido situação semelhante, em 1990, em Jerez de la Frontera, quando Senna foi até a pista acompanhar a assistência médica ao irlandês Martin Donnely, da Lotus, que sofrera o mais impressionante acidente que já vi pessoalmente na F-1. Como na Espanha em 1990, Senna também chorou em Ímola, por causa de Rubinho. "Por favor, me deixem passar, ele parece que está bem, está bem", se limitou a nos falar. Estávamos na porta do ambulatório.
O treino ficou interrompido por 22 minutos. "The show must go on" é o lema da F1, ou seja, o "show deve continuar", e assim foi feito. As notícias sobre Rubinho eram tranquilizadoras, para surpresa de muitos.
Os pilotos voltaram a disputar a classificação. Fazia calor, 28 graus. No fim da sessão, Senna conseguiu ser o mais veloz, como já fora no Brasil e em Aida, no Japão: 1min21s548 diante de 1min22s015 de Schumacher. "Tivemos um treino caótico, o acidente do Rubinho afetou a todos. Não consegui dar uma única volta bem feita, quando acertava aqui, errava ali", afirmou Senna. "No final, ser o mais veloz é ótimo, acima do que eu poderia esperar", completou.
Senna visita o amigo no hospital
Rubinho fora transferido para o Hospital Maggiore de Bolonha, a cerca de 50 quilômetros de Ímola, para exames mais detalhados. Senna apressou as suas reuniões com a equipe Williams, depois da classificação, para ir até o hospital visitar o amigo. Pouco tempo antes daquele GP na Itália, Rubinho e Senna passaram vários dias juntos no Japão, em Tóquio, antes de embarcar para Aida a fim de disputar a segunda prova do campeonato.
Até hoje Rubinho descreve o prazer que teve de conhecer Senna mais intimamente naquela viagem. "Demos muita risada na Disney", recorda Rubinho. "Foi importante para mim aquele contato, o Ayrton era o meu maior ídolo."
Geraldo Rodrigues, o anfitrião dos visitantes de Rubinho no hospital, me contou à noite, quando estive lá, que Senna se interessou em saber detalhes do estado de Rubinho e que demonstrava estar apreensivo. O Hospital Maggiore de Bolonha é público. Rubinho dividiu o quarto com outros dois pacientes.
Quando entrei no quarto, no início da noite, vi Senna e fiquei surpreso com a presença desses pacientes no mesmo local. Rubinho dormia. Tinha o rosto bastante inchado pela fratura do nariz. Liguei de um telefone público para o Estadão, a fim de passar um texto por telefone. Não havia onde escrever ali no hospital. Aliás, era uma concentração de pessoas impressionantemente mal educadas. Não havia, ainda, a telefonia celular, ao menos popularizada, e a internet era algo que na prática ainda não existia.
Imaginei, na hora, como os europeus reagiriam se, no GP do Brasil, um piloto acidentado fosse levado ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas e, depois, permanecesse em observação na enfermaria, junto de outros doentes. Provavelmente a corrida não mais seria disputada no país.
A sexta-feira terminou para Senna ainda pior do que começara. O acidente de Rubinho o afetara visivelmente. Pude acompanhar o seu trabalho na Williams, depois, até onde nos é permitido chegar, na frente dessas garagens. Com toda certeza estava abalado. Ele mesmo confessou ter cometido vários erros na pista.
Mas se a sexta-feira foi ruim, o sábado seria ainda pior. Roland Ratzenberger morreu ao colidir a 300 km/h com sua Simtek, na curva Villeneuve. Se o quadro emocional vivido por Senna já era difícil, por tudo que o cercava e o susto com Rubinho, no dia anterior, agora ganhara conotações dramáticas.
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