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Olhar Olímpico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atletismo faz bom Mundial, mas precisa tomar Letícia como referência

25/07/2022 15h24

De quase todos os ângulos, a campanha do Brasil no Mundial de Atletismo foi a melhor ou um dos melhores da história. Em ouros (um, assim como 2011), no quadro de medalhas (ouro e bronze é melhor que as duas pratas e um bronze de 1999), em número de medalhas (duas, antes três em 1999, e uma ou zero no resto), e especialmente no quadro de pontos, que é o meu critério favorito.

O atletismo historicamente produz esse quadro, que dá um ponto para o oitavo lugar, dois para o sétimo, e assim vai, até oito para o primeiro. Acho um critério melhor que o quadro de medalhas, onde faz muita diferença o talento individual. O de pontos valoriza o trabalho coletivo.

E, nele, o Brasil somou 34 pontos, batendo a campanha de 1999, quando fez 26. Foram 10 colocações de top8, sendo oito em provas olímpicas (a marcha atlética 35km não é). Até então, o recorde era de sete top8 em 2013 e, depois, novamente em 2019. Em Eugene, o atletismo brasileiro mostrou que tem mais atletas em condições de brigar por medalha, o que aumenta, consequentemente, as chances de pódio.

Mas há uma questão que me incomoda muito, e sei que também deixa muito fã com a pulga atrás da orelha. Quando a gente olha as classificações de um novo ângulo, de baixo para cima, observa claramente um problema.

Em Eugene, o Brasil teve quatro atletas que terminaram suas provas entre os cinco primeiros. Ao mesmo tempo, teve 11 competidores que ficaram entre os cinco últimos, além de um que não acertou nenhum salto — oficialmente ele ficou sem classificação, não em último.

Ainda que tenha vários bons resultados recentes, o Brasil tem levado às grandes competições delegações cada vez mais desequilibradas. Fiz um levantamento sem embasamento científico, na unha, para mostrar, em números, o que está acontecendo. Para isso adotei o 16º lugar como limite do que é um "bom/ótimo" resultado. Abaixo disso estão os resultados medianos, ruins e péssimos.

Ao longo dos anos, o número de resultados acima do 16º lugar tem se mantido mais ou menos constante. Foram 14 no Mundial de 2013, 13 no de 2019 e 15 no de 2022. Em Jogos Olímpicos, 15 em 2012 e 12 em 2020, quando a campanha coletiva do Brasil foi abaixo da crítica.

Mas cresceu muito o número de resultados que não são bons. Em Londres-2012, o Brasil teve 10 exibições que ficaram do 20º lugar para baixo. Em Tóquio foram 30, três vezes mais. Em Mundial, foram 11 apresentações abaixo do 20º em 2013 e 28 agora. É muita coisa. Mais da metade da delegação foi aos Estados Unidos, gastando em torno de R$ 20 mil cada só de passagem aérea, para passar longe de avançar das eliminatórias, ou brigar na metade de cima em provas de tiro único.

Isso acontece porque, para muitos atletas, o objetivo é ir ao Mundial, e falta fôlego para competir nele. Fazendo uma analogia: imagine que você quer conhecer Paris. Junta dinheiro ao longo de anos, compra a passagem, reserva o hotel, mas não sobra grana para passear em Paris, pagar o metrô. Então você sai do hotel uma única vez, tira foto na Torre Eiffel e ganha o direito de marcar a França mapa de "lugares que conheço" quando a trend voltar ao Instagram. Mas não visita, de fato, Paris.

Para boa parte do atletismo brasileiro (11 classificações entre os cinco últimos), só há energia para se classificar ou para competir no Mundial. Um ou outro. Pelos critérios da World Athletics, se conquista vaga no Mundial por tempo/marca e por um ranking que leva em conta resultados de várias competições. Os brasileiros são privilegiados por terem tido dois eventos internacionais relevantes em São Paulo quase exclusivos, com pouquíssimos estrangeiros.

Para se classificar por esse ranking, a maioria dos brasileiros ainda assim teve que competir muito e chegou ao Mundial cansado, com o objetivo da temporada cumprido. Por isso o monte de "estou feliz de ter chegado até aqui" dito em entrevista pós-prova, depois de um resultado muito ruim, o que irrita grande parte dos torcedores. De fato deve ser um orgulho ser o 35º do mundo em alguma coisa. Mas, para o atletismo brasileiro, é suficiente?

Aqui, penso diferente do comando da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), que vê nas delegações enormes (quase 60 atletas em Eugene) um prêmio para federações, atletas e treinadores. "O atleta tem o direito de ser convocado se fez jus à vaga pelos critérios da World Athletics" é um mantra na entidade e na comunidade.

Não acho que seja assim. Na natação, quem fizer índice no Pan ou em um Mare Nostrum (torneio amistoso na Europa) tem direito a vaga na Olimpíada. Mas os países mais fortes, incluindo o Brasil, só convocam quem fizer índice no campeonato nacional. É duro tanto para a confederação quanto para os atletas. Brandonn Pierry, por exemplo, poderia brigar por medalha em Tóquio e não foi nem convocado. Mas é uma regra que estimula o atleta a competir bem na hora certa.

Não sei qual seria o melhor critério para o atletismo, mas acho o atual ruim e caro. Todo o esporte brasileiro vende o almoço para comprar o jantar e não é diferente com o atletismo. O cobertor é curto e, hoje, está pagando para atletas irem a grandes eventos como "prêmio". Penso que muito melhor seria investir em treinamento. Entrou pelo ranking, longe das primeiras posições? Não vai ao Mundial, mas terá apoio da CBAt para passar um período treinando e competindo no exterior. Mais experiente, em melhor forma, tenta entrar por índice.

Também acho ruim o critério de convocar para o Mundial quem ganhou o Sul-Americano, ainda mais em uma competição realizada há mais de um ano, como foi o caso. Com mais sorte que juízo, a CBAt, porém, se deu bem ao adotar essa regra, porque Letícia Oro Melo passou o primeiro semestre machucada, não iria ao Mundial por outro critério, foi ao Oregon sem nenhuma expectativa, e ganhou uma medalha de bronze.

Letícia mostrou que é, sim, possível entrar no Mundial como 50ª do ranking, ou algo assim, e chegar à medalha, ainda que seja algo raríssimo. Mas isso não vai acontecer num lance de sorte. Ela deixou claro, nas entrevistas, que só pensou em medalha, que não se assustou de ver pessoalmente pela primeira vez as melhores do mundo, que "não tem medo de ninguém", como afirmou. É essa mentalidade que precisa ser replicada.

O atletismo brasileiro tem um ótimo potencial. Piu já é o melhor do mundo nos 400m com barreiras e pode entrar na briga nos 400m rasos se quiser. Darlan, Caio e Thiago seguem entre os melhores de suas provas e Almir Jr voltou a entrar em final (primeiro passo para ganhar medalha).

Há também muito potencial em Vitória Rosa, que bateu recorde sul-americano e teria sido finalista de qualquer outro Mundial nos 200m, e em Rafael Pereira, que parou antes do que devia nos 110m com barreiras. Danielzinho teve um resultado pior do que se esperava, mas correu entre os grandes da maratona e é muito jovem.

A CBAt contratou recentemente o diretor Jorge Bichara, que no COB apostou na estratégia de investir pesado em um grupo menor de atletas com potencial, o oposto do que tem feito a confederação. Tenho minhas críticas ao modelo, mas ele deu certo. Se aplicado no atletismo, a tendência é o Brasil chegar a Paris com 15 chances de pódio, o que pode virar três ou quatro medalhas.