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Ministério Público acusa evento milionário de Doda de maltratar cavalos

Doda participa de concurso hípico em seu rancho em Itatiba - Divulgação
Doda participa de concurso hípico em seu rancho em Itatiba Imagem: Divulgação

23/02/2022 04h00

A promotoria de Justiça de Itatiba, no interior de São Paulo, pediu à Justiça que a empresa do cavaleiro Álvaro de Miranda Neto, o Doda, seja proibida de continuar organizando eventos de hipismo, alegando que houve maltrato de animais em etapa do DTC Tour e do Longines XTC, em agosto do ano passado, no rancho do medalhista olímpico em Itatiba. Ele nega as acusações.

O processo contra o evento, um dos principais do país no hipismo saltos, com premiações que ultrapassam R$ 1 milhão por etapa, foi inicialmente aberto pela gaúcha Associação Passofundense de Proteção dos Animais, que queria a proibição da etapa realizada em agosto de 2021. A Justiça negou o pedido, mas proibiu "utilizar quaisquer instrumentos (freios, bridões, chicotes, esporas, sejam pontiagudas ou rombas, martingales, gamarras, hackamores, freios professora e quaisquer outros) de forma que cause dor ou sofrimento nos animais".

Na decisão, a Justiça também determinou que a empresa de Doda, a RD Jumping Higher, autorizasse a entrada de uma veterinária que deveria ser acompanhada de um oficial de Justiça. Caberia a ela acompanhar o cumprimento, ou não, da proibição de determinados equipamentos. De acordo com o MP, porém, o concurso de saltos não autorizou a entrada da veterinária. A organização alega que a decisão foi oficiada depois do término do evento. Essa mesma profissional, antes da autorização judicial, teve sua entrada no evento vetada.

Mas, segundo a denúncia do MP, outros profissionais, assistindo à prova no local ou por transmissão online, encontraram diversos indícios de maus-tratos. O parecer do Ministério Público cita 17 imagens que comprovariam isso.

"A imagem 10 revela equino vocalizando, com membros anteriores suspensos, agitação abundante de orelhas, bocas e cauda característica de tentativa frustrada de retirada de atleta humano montado. Observou-se conduta do atleta humano de múltiplos golpes com os pés em baixo ventre e aplicação de força em rédea e bridão que gerou deslocamento temporário de estruturas anatômicas gerando desconforto, dor local e possíveis lesões. A avaliação das lesões foi impossibilitada durante o evento", escreve o MP sobre uma dessas imagens.

O Ministério Público conclui, a partir delas, que "não há dúvidas de que a realização do evento denominado 5ª Etapa DTC Tour / 6ª Etapa Longines XTC 2021 culminou na prática de maus-tratos aos animais envolvidos" e pede que a empresa de Doda seja proibida de fazer provas com animais com equipamentos necessários ao hipismo (o que na prática proíbe as provas) e seja condenada a pagar R$ 100 mil por dano moral coletivo. As promotoras Ana Paula Ribeiro e Mariana Lima pedem as mesmas punições também ao município de Itatiba, que teria sido conivente.

A coluna entrou em contato com a assessoria de imprensa de Doda, que indicou André Beck, diretor do evento, para falar sobre o assunto. Beck diz que o concurso foi acompanhado de perto, durante quatro dias, por veterinários da prefeitura, que não identificaram nenhuma irregularidade. "Além disso, o veterinário oficial do evento esteve no concurso, com uma equipe de veterinários, fez uma vistoria completa em todos os cavalos", afirma. Segundo ele, não existe nenhum indício de maus-tratos em nenhum evento de hipismo no Brasil.

Em nota, o evento disse que a acusação é inverídica e que "qualquer pessoa que conhece as instalações do local, bem como o histórico de atuação dos seus sócios, sabe que a preocupação e o cuidado com o bem-estar dos cavalos estão em primeiro lugar."

"A peça que sustenta a investigação foi feita a partir de fotos, que podem ser manipuladas e nunca vão representar um laudo técnico, que é feito in loco, com todos os requisitos de uma verificação técnica de condições e ambientes onde os animais são mantidos. Um laudo da Prefeitura de Itatiba, este sim, feito in loco, com exame da situação, atestou que as condições são totalmente adequadas, sem apontar absolutamente nada que desabone o local", destacaram os organizadores,

A discussão gira em torno da concepção do que é bem-estar do animal, como explica a veterinária de equinos Laura Pereira Pinseta, especialista na área e mestranda da Universidade de São Paulo (USP). "Falta muito e acredito que boa parte das pessoas se enquadram no perfil de achar que está cuidando bem do animal. Pessoas que gastam R$ 5 mil com cavalo por mês e se você disser que não está num nível de bem-estar adequado, a pessoa que bater em você. As pessoas têm que entender que bem-estar é ciência. Bem-estar não é uma coisa de 'como somos legais para os animais'", ela afirma.

É crescente, mundialmente, uma corrente que defende a proibição de eventos equestres. Laura não faz parte deste grupo, mas considera que seja urgente a adoção de novas práticas. "A 'licença social para operar' é um movimento mundial que acabou com inúmeras cadeias produtivas no mundo inteiro. Se a sociedade passa a questionar as nossas práticas, aquela cadeia acaba. O hipismo está atrasado, a ciência está longe. Por que não bate na porta da USP? 'Me ajuda aqui, me dá um carimbo para mostrar para sociedade que eu estou fazendo alguma coisa'. Mas isso não acontece."

A veterinária faz parte de uma comissão de bem-estar animal da CBH, que existe no papel, mas, segundo ela, não tem qualquer atividade prática. "Ninguém fiscaliza. As corridas de cavalo estão dando baile no hipismo em relação a isso, principalmente em São Paulo, porque estão colocando fiscalização altamente científicas. No hipismo tem um fiscal que fica passeando nas cocheiras, fazem uma inspeção que é o cavalo trota para cá, trota para lá, e é aprovado. Inspeção robusta mesmo, científica, não tem."