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'Cidade-horta' inglesa alimenta moradores e inspira cultivo urbano no mundo

Hortas cultivadas por integrantes do projeto Incredible Edible em Todmorden, no norte da Inglaterra - Reprodução/ Incredible Edible
Hortas cultivadas por integrantes do projeto Incredible Edible em Todmorden, no norte da Inglaterra Imagem: Reprodução/ Incredible Edible

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo

20/05/2022 06h00

Nos últimos 14 anos, uma cidadezinha industrial do norte da Inglaterra sofreu uma transformação radical. Todmorden passou a ter hortas em todo canto onde houvesse espaço: hospitais, delegacias, escolas, cemitérios, parques, terrenos baldios. Qualquer um pode colher os alimentos plantados.

Essa mudança na paisagem é consequência do projeto Incredible Edible (algo como "Incrível comestível"), criado em em Todmorden em 2008 por Pamela Warhurst, Mary Clear e um grupo de pessoas interessadas em plantar na cidade.

"Começamos a cultivar alimentos em espaços públicos, sem pedir autorização ou dinheiro, para iniciar uma conversa sobre o que podíamos fazer enquanto pessoas comuns. E isso decolou", diz Warhurst a Ecoa.

Hoje, o Incredible Edible já ultrapassou e muito os limites da cidade de 15 mil habitantes: inspirou a formação de mais de 150 grupos espalhados pelo Reino Unido e experiências de agricultura urbana em outros lugares do mundo.

A expectativa do projeto não é produzir alimentos para tornar cidades ou vilas autossuficientes, mas provocar mudanças e discussões sobre o sistema alimentar, a terra e a comunidade.

Ainda assim, os grupos do Incredible Edible cultivam um total de 16.744 m² — o equivalente aproximado à área de dois campos de futebol, segundo o relatório 2018-2020 do projeto. Mais de 4.300 pessoas estão envolvidas.

O poder das pequenas ações

Moradora de Todmorden, a líder comunitária e economista de formação Pam Warhurst se define como "uma mãe solo preocupada com o futuro de sua filha".

Antes de fundar o Incredible Edible, ela já ocupava cargos em conselhos de órgãos públicos e acompanhava as discussões das conferências ambientais internacionais. "Eu conheço o sistema e sei que é cheio de pessoas boas. Mas nem sempre funciona de acordo com os interesses da população e é difícil mudar a maneira como as coisas são feitas", diz.

Cansada de esperar por uma mudança vinda dos tomadores de decisão, ela decidiu agir. A ideia de plantar alimentos se deu pelo fato de a comida ser algo compartilhado por todo mundo, com uma mensagem simples e clara. Assim, o Incredible Edible nasceu baseado no plantio comunitário, no compartilhamento de habilidades entre as pessoas e no apoio a negócios locais.

Minhas mensagens são sempre essas: acredite no poder das pequenas ações, confie nas pessoas; somos soluções, e não vítimas, e podemos trazer esperança para a próxima geração.

Pam Warhurst, fundadora do projeto Incredible Edible

O objetivo, segundo Warhurst, era mostrar a importância da produção de alimentos para se viver bem no futuro, quando os problemas relacionados às mudanças climáticas atingirem as cidades com mais força.

horta todmorden - Incredible Edible/reprodução - Incredible Edible/reprodução
Canteiro de hortaliças do Incredible Edible em Todmorden, Inglaterra
Imagem: Incredible Edible/reprodução

Mas o projeto acabou trazendo resultados além do esperado. A população local começou a questionar de onde vinham os alimentos que consumia e como eram cultivados.

As hortas de Todmorden fortaleceram a comunidade, geraram renda e fizeram com que a população passasse a se alimentar melhor. Também impulsionaram a economia local: atraíram visitantes de outras cidades, barracas de comida de rua surgiram e os restaurantes se deram conta de que trabalhar com produtos locais agregava valor ao negócio.

A valorização do cultivo e preparo dos alimentos em âmbito local teve impacto até na família de Warhurst: sua filha se tornou cozinheira e trabalha na cidade.

Direito de plantar

Atualmente, com o apoio de juristas, acadêmicos e de outras organizações, o Incredible Edible está trabalhando para aprovar uma legislação que reconheça o direito de cultivar terras públicas no Reino Unido.

A lei prevê que autoridades identifiquem as terras do setor público adequadas ao plantio e cria um processo simples para que as comunidades possam requerer esse cultivo por um determinado período.

O projeto de lei veio da experiência dos grupos do Incredible Edible em diferentes localidades. Eles perceberam que, havendo uma autoridade local simpática à causa, era fácil encontrar onde plantar. Sem ter essa sorte, o uso de terra pública se tornava um problema.

Temos uma crise climática, uma crise de saúde e uma crise de vínculos nas comunidades e temos muitas terras, pagas com dinheiro público, que não estão sendo usadas para ajudar nisso. Não faz o menor sentido. A primeira coisa a fazer para dar às pessoas poder de decisão sobre como vivem suas vidas é conceder o direito de plantar na terra que é paga com os seus impostos.

Pam Warhurst, fundadora do projeto Incredible Edible

Intercâmbio hortícola

À medida que a história do projeto se tornou conhecida, Warhurst começou a receber convites para falar sobre ele em vários países. Ela esteve em 2012 em São Paulo, onde compartilhou sua experiência com hortelões locais, conheceu hortas comunitárias e não deixou de colocar a mão na terra para plantar.

Ao visitar a Horta das Corujas — uma das primeiras de um movimento de hortas comunitárias que ganhou força na capital paulista na última década, fundada meses antes —, a ativista inglesa reconheceu que o que estava sendo feito ali era semelhante à prática do Incredible Edible, definida por ela como "horticultura de propaganda".

"Na visão da Pam, o que a gente estava fazendo era tentar trazer visibilidade para um movimento muito maior. E isso é uma percepção muito acertada da função das hortas comunitárias", diz a Ecoa a cofundadora da Horta das Corujas Claudia Visoni.

Para além de fortalecer comunidades, oferecer educação ambiental e nutricional na prática e melhorar a saúde pública, Visoni destaca que as hortas também fazem as pessoas "refletirem sobre o nosso sistema alimentar e vivenciarem um outro mundo possível".

Visoni conheceu a cidade-horta inglesa em 2017 e ficou encantada ao ver que a agricultura urbana tinha feito a economia da cidade renascer, fortalecido a educação e os laços comunitários.

"Claro que os exemplos de lá são mais facilmente replicados em cidades muito pequenas — São Paulo é uma metrópole e Todmorden já virou um grande jardim", ponderou a brasileira. "Mas a gente se inspira nessa maneira descomplicada, amigável, inclusiva de criar hortas comunitárias e com isso fazer brotar muito mais do que comida."