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Médica que "achou" Zika em 2015 agora ajuda e trata crianças de todo o país

Adriana Melo lidera hoje o Ipesq e a ONG "Amor sem dimensões" - Ines Eisele
Adriana Melo lidera hoje o Ipesq e a ONG 'Amor sem dimensões' Imagem: Ines Eisele

Carlos Madeiro

Colaboração para Ecoa, em Maceió

01/02/2022 06h00

Em novembro de 2015, espantada com o número de crianças que estavam nascendo com microcefalia, a médica e pesquisadora Adriana Melo sabia que havia um agente novo circulando e causando problemas no Nordeste. Foi dela a amostra de líquido amniótico de duas gestantes que fizeram os cientistas achar o vírus da Zika na amostra —e ligarem ele ao problema.

Especialista em medicina fetal, Adriana não se limitou a ajudar na descoberta e hoje preside o Ipesq (Instituto Professor Joaquim Amorim Neto) e a ONG Amor Sem Dimensões", em Campina Grande (no agreste da Paraíba), que são referência no tratamento de crianças com a síndrome congênita associada ao vírus da Zika e na luta de direitos para as vítimas do problema no país.

Mal sabia ela que um outro vírus iria cruzar a sua vida. Com a covid-19, dois novos desafios surgiram: proteger as crianças do coronavírus e vencer o negacionismo —que fez com que mães tivessem medo de vacinar seus filhos.

Médica Adriana Melo, que fez relação entre zika e microcefalia - Bruno Landim Pedersoli/UOL - Bruno Landim Pedersoli/UOL
Médica Adriana Melo, que fez relação entre zika e microcefalia
Imagem: Bruno Landim Pedersoli/UOL

O medo e a proteção no começo

Adriana conta a Ecoa que, logo após a confirmação do vírus da Zika como causadora das microcefalias, sabia do desafio que seria encarar o momento. "Eu já pensei como seria difícil a situação das crianças e mães, e comecei a pensar como amenizar as dores", diz.

Ainda em novembro de 2015, o Ipesq criou o primeiro ambulatório para atender gestantes com manchas no corpo (sinal de zika). "Atendemos quase 1.000 grávidas com sintomas. Não tem como esquecer esse momento: as gestantes chegavam chorando, tensas", lembra.

Escolhi a sexta feira para fazer as ultrassonografias porque tinha o final de semana para estabilizar minha cabeça. Lembro de cada caso que eu disse que tinha alteração e que precisávamos de algum exame adicional. Lembro da pergunta que eu não conseguia responder: meu filho vai sobreviver? Minha única opção como médica era pegar na mão e dizer que eu estaria ali
Adriana Melo

Vendo a gravidade dos danos cerebrais, ela admite que pensou que as crianças não teriam muitas chances de sobreviver; ou, caso nascessem com vida, poucas avançariam no desenvolvimento psicomotor. Por isso, o primeiro programa coordenado foi voltado para as mães e focava no apoio psicológico.

"Mas tudo mudou quando vi o vídeo de Catarina Maria brincando de estátua com a mãe aos seis meses de vida. E por que Catarina estava evoluindo tão bem? Porque a mãe é fisioterapeuta e começou a fazer terapia intensiva diária desde o quarto dia de vida", diz.

Catarina foi a menina "caso um" da associação do vírus aos problemas cerebrais. Foi da mãe dela, a fisioterapeuta Conceição Alcântara, que foi colhido líquido amniótico que comprovou a relação.

Conceição e Catarina inda bebê no colo da médica Adriana Melo  - Ipesq/Divulgação - Ipesq/Divulgação
Conceição e Catarina inda bebê no colo da médica Adriana Melo
Imagem: Ipesq/Divulgação

"Ele teve uma importância para as futuras descobertas e avanços médicos e terapêuticos, não apenas pelo fato dela ser médica e pesquisadora, mas acima de tudo, por ela ter um imenso coração e ser humana suficiente para abraçar a causa e lutar para o benefício dos atingidos e pela sociedade como um todo, para que novos casos não surgissem", diz Conceição a Ecoa.

Aos cinco anos, Catarina se trata até hoje no Ipesq, coleciona avanços e teve sua evolução comparada a um milagre.

Apoio fundamental

Vendo o desenvolvimento de Catarina, Adriana Melo começou outra luta: convencer os gestores que era preciso investir no tratamento das crianças. "Foram várias reuniões em Campina Grande e em Brasília, mas infelizmente o projeto [pelo Ministério da Saúde] não saiu do papel", lamenta.

"O tempo ia passando e eu acompanhava a angústia das mães no grupo de whatsapp que criamos desde o início dos casos. Faltavam vagas, medicamentos, consultas, fisioterapias, fono, terapeutas funcionais. Chegamos ao ponto que faltou vagas em UTI e sondas para as crianças conseguirem se alimentar", conta.

No Carnaval de 2017, um marco iria mudar tudo: ela convidada pelo psicólogo e escritor Rossandro Klinger para ir para Goiânia participar de um evento espírita. "Assim foi o começo do 'Amor Sem Dimensões'. No final do evento saímos com quase R$ 100 mil em doações e o mais importante: o apoio da ONG 'Fraternidade sem fronteiras', que nos convidou para ser a primeira causa brasileira", relata.

Centro de tratamento em Campina Grande é referência no país hoje - Ipesq/Divulgação - Ipesq/Divulgação
Centro de tratamento em Campina Grande (PB) é referência no país hoje
Imagem: Ipesq/Divulgação

A partir dali o Ipesq passou a ter um braço para tratar as crianças: a Amor Sem Dimensões conseguiu padrinhos que doavam R$ 50 reais por mês. "Conseguimos também o empréstimo de uma casa para a nossa sede", diz Adriana.

Em 1° de julho de 2017, foi inaugurada a sede da ONG, inicialmente atendendo seis crianças. Hoje, são cerca de 100. "E em 2019 inauguramos a casa de apoio que recebia mães e crianças de todo Brasil. Recebemos crianças do Amazonas, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhão, Piauí, Alagoas e duas crianças de fora do país: uma da Venezuela e outra de Angola", diz.

Em 2020, a ONG cresceu e foi inaugurada uma nova sede, em Belo Horizonte. Além disso, passaram a apoiar a Associação Família de Anjos de Alagoas, de Maceió, com a reforma da sede e apoio e atendimento a crianças.

Alessandra Hora dirige a Associação Famílias de Anjos, em Macieó - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Alessandra Hora dirige a Associação Família de Anjos, em Macieó
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

A pandemia e suas angústias

O que Adriana não contava era que a covid-19 iria cair como uma bomba para essas crianças. Com várias sequelas do vírus da Zika, as crianças tinham comorbidades e a médica admite que temeu por seus "afilhados".

"[Temi] Primeiro porque muitas crianças já têm sequelas pulmonares devido a infecções respiratórias de repetição. No íntimo eu temia que as crianças fossem novamente vítimas de um vírus. Seria uma tragédia", confessa.

Com a paralisação dos serviços, por sinal, muitas crianças regrediram em suas evoluções.

Nos piores momentos da pandemia, ela orientou mães, distribuindo máscaras e material para higienização. O trabalho deu resultado: "não perdemos nenhuma criança para o coronavírus".

Mas a morte de uma mãe que já levava o filho ao 'Amor sem fronteiras' trouxe um novo susto e preocupação: "quem cuidaria das crianças caso as mães fossem vítimas fatais do coronavírus?"

A primeira medida para evitar outros óbitos das mães veio com ações de incentivo à vacinação através do whatsapp.

Usamos o grupo que temos para tirar dúvidas, avisar dos horários de atendimento e sobretudo para acompanhar as condições de saúde das crianças
Adriana Melo

Este ano chegou a hora tão esperada: de vacinar as crianças —e com a imunização, as dúvidas dos pais. O pior momento foi quando uma mãe colocou uma fake news sobre vacinas no grupo.

"Nesse momento, eu tive que intervir pedindo para que não publicassem aquilo no grupo e perguntei se elas achavam que eu iria indicar uma vacina para as nossas crianças se eu não confiasse nos resultados, afinal eu estou sempre presente protegendo-as", diz.

A prefeitura de Campina Grande enviou uma equipe para o centro de tratamento para vacinar as crianças e as mães se sentiram seguras. "A adesão foi ótima. Hoje, todos estão bem. O mais interessante é que elas estão sendo procuradas por outros pais querendo saber se seus filhos tiveram reações adversas", finaliza.