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Ação comunitária cria escolinha de futebol sob viaduto no centro de SP

Crianças reunidas na escolinha comunitária Arena Bela Vista em foto do início de 2020 - Arena Bela Vista
Crianças reunidas na escolinha comunitária Arena Bela Vista em foto do início de 2020 Imagem: Arena Bela Vista

Adriana Terra

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

02/02/2021 04h00

Foi passando próximo ao viaduto Jaceguai, no Bixiga, região central de São Paulo, que o marido da dona de casa Sônia Martins, 38, descobriu a escolinha de futebol Arena Bela Vista. O filho mais novo do casal, Mateus, 7, tem bronquite asmática e precisava praticar uma atividade física, mas a família não tinha como bancar aulas, mora em local pequeno e sentia falta de espaços de lazer gratuitos perto de casa, ainda mais com acompanhamento. "Aqui não tem um campo, só lugar pago e eu não tenho condições pra isso. Vejo o projeto como um refúgio, a semana toda o Mateus fica esperando: tal dia, tal hora tem treino", diz ela.

O Arena nasceu em 2017, quando Antônio Carlos Júnior, 41, reuniu-se com amigos, como Uilson Galdino, 48, e Raphael Cassiano, 35, para adaptar um espaço embaixo do viaduto em campo de futebol. "Pensamos: por que a gente não constrói algo para a comunidade?", diz Raphael, explicando como a ideia se tornou um projeto social. Antônio conta que seu pai jogava bola ali nos anos 1980. "Tentamos retomar essa tradição do bairro, pintamos o chão da quadra, o Uilson (que é ex-atleta e treinador) com alguns contatos trouxe as traves, e quem começou a vir mais foram as crianças. Então fomos aprender a trabalhar com elas."

A inspiração veio da própria experiência de vida deles. Criados e residentes no Bixiga, lembram de querer um lugar próprio para jogar futebol na infância e adolescência e não terem, e conhecem de perto questões que afetam muitas famílias no bairro. Apesar de estarem em uma região central e com boa infraestrutura, pais sofrem com a falta de espaço ou tempo para brincar com as crianças, impossibilidade de pagar uma aula extracurricular ou de levar os filhos para uma atividade mais longe.

Os fundadores do projeto também sabem que há muita gente - inclusive muitas crianças - vivendo ali: a Bela Vista, onde fica o bairro, é o distrito mais adensado da cidade, com 27 mil habitantes por quilômetro quadrado. Parte desses moradores, bem como dos alunos do Arena, contam os organizadores, mora em pensões (segundo o Censo de 2010, são 747 cortiços no distrito, o maior número do centro) e ocupações. "E hoje o pai e a mãe vão ter de pagar R$ 150, R$ 200 em uma escolinha de futebol", diz Antônio.

No Bixiga, a rua ainda é usada para brincar, mas os pais de crianças menores são mais temerosos. Além disso, o projeto tem monitores e estrutura profissional, o que deixa a turma empolgada: ex-jogadores de futebol como Zé Roberto e Marcelinho Carioca, ou a jogadora de basquete Damiris Dantas, única brasileira na WNBA, já foram lá bater um papo. A iniciativa acaba ainda conectando os alunos a uma prática física, ao ar livre e coletiva, o que muitas crianças de centros urbanos hoje não têm, e tirando sua atenção um pouco das telas.

Para arcar com os custos do projeto, os organizadores têm colaboração de uma rede de contatos do esporte e da vizinhança: moradores compraram rifas no começo da iniciativa e comerciantes ajudam a adquirir camisetas, bolas. A ideia é que nada tenha custo para as famílias. Em 2019, a Prefeitura deu uma concessão ao Arena Bela Vista para gerir o espaço priorizando o projeto social, sem restringi-lo, já que o local é público. Grupos variados jogam ali em horários em que não há aula.

Aula no Arena Bela Vista antes da pandemia, em São Paulo - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Aula no Arena Bela Vista antes da pandemia, em São Paulo
Imagem: Adriana Terra/UOL

Esporte e cidadania

"Nós aqui agregamos da Santa Cecília até a Baixada do Glicério", conta Uilson. Quem mora na região sabe: todo fim de tarde é certeiro encontrar crianças pelas ruas caminhando animadas para a quadra, com suas camisetas da escolinha. O projeto atende crianças e adolescentes dos 6 aos 16 anos. Da Liberdade a operadora de caixa Denise Santana, 30, vem com o filho Giovani, 8. "Adoro futebol", diz ele, ainda meio tímido em seu terceiro treino, que começa sempre com uma série de atividades físicas recomendadas para o dia a dia das crianças e dura duas horas.

Moradora do Bixiga, a analista de sistemas Patrícia Oliveira, 37, leva os três filhos ao Arena. A mais nova, Giovana, 6, começou a fazer aulas recentemente - meninos e meninas jogam juntos ali. "A vida da gente é corrida, e o bairro não tem tantos benefícios para crianças", diz ela, contando que a filha passou a conhecer mais sobre futebol feminino e saber quem são as jogadoras a partir das aulas.

Já o microempreendedor Gilberto Lima, 39, pagava uma escolinha para os filhos em outra quadra local, mas o lazer pesou no orçamento e ele descobriu o projeto. Hoje, acompanha duas vezes por semana os treinos de Gustavo, 8, e do sobrinho Eduardo, da mesma idade.

A empregada doméstica Ivone Feitosa, 43, leva Davi, 5, e Miguel, 9, ao Arena. Também moradora do bairro, ela conta que as crianças ficavam muito em casa, e o espaço é pequeno. Ela mora em um apartamento térreo no prédio no qual o marido é zelador. "Não dá para eles brincarem muito ali", diz.

O projeto reúne cadastros de mais de 400 crianças, e hoje está com cerca de 150 alunos. Com a pandemia, eles deram uma pausa nas atividades - que têm voltado, com adaptações - e contribuíram na arrecadação de 700 cestas básicas para famílias do bairro, em parceria com organizações locais.

Os fundadores da iniciativa contam que o objetivo do Arena é não só treinar futebol, mas ajudar na sociabilidade e na formação cidadã. Ao lado da quadra, uma biblioteca vem sendo organizada, com apoio de uma livraria do bairro. "Já tivemos criança moradora de rua no projeto, muitos o pai está preso. No Arena a gente está conseguindo mudar a cabeça dos jovens, [fazendo entender] que a emoção não é correr da polícia, mas atrás de um troféu, de um diploma. A emoção de correr da polícia não traz benefício, mas só tristeza dentro de casa. Isso ainda é muito comum aqui", diz Antônio.

Para acompanhar os alunos além da quadra, eles estreitaram laços com escolas da região. "Temos grupos com os pais, fazemos reuniões semanais, eu fiz um curso de formação em impacto social", conta o organizador. "Legal se sair um jogador, mas se sair um advogado, uma jornalista, um dentista, pra gente é uma grande vitória", crê Raphael.

Como ajudar

É possível apoiar o Arena Bela Vista de diversas formas, entrando em contato com os organizadores.