Preto no poder preto é

Ex-deputado, Luiz Alberto ajudou a fundar o PT e a CUT, mas viu a pauta racial ser ignorada. Até pela esquerda

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Rafael Martins/UOL

Em 1997, Luiz Alberto Santos, 68, mal assumiu seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados quando decidiu. Formaria uma equipe majoritariamente de pessoas negras. O parlamentar baiano eleito pelo PT (Partido dos Trabalhadores) sabia que a representatividade não era um dos fortes do Congresso Nacional, mas não pensou que fosse incomodar. Colegas de mandato até chegaram a questionar sua atitude.

Respondia que fossem aos outros gabinetes perguntar por que não havia pessoas negras lá, já que somos a maioria da população. Era uma forma de chamar a atenção para algo que segue até hoje, já que a maioria dos deputados e seus assessores são brancos

A atuação parlamentar durou mais quatro mandatos até ser encerada em 2015. Apesar de ter sua trajetória ligada a movimentos trabalhistas, ele tentou fazer da experiência política um retrato de sua militância no movimento negro, ou seja, processos políticos mais coletivos e menos personalistas. "Mesmo com tantos mandatos, minha intenção sempre foi levar para o Congresso as demandas que ouvi nas ruas desde a década de 1970", diz.

Uma delas foi transformar o 20 de novembro em feriado nacional, visto que àquela altura muitas cidades brasileiras já celebravam a data como Dia Nacional da Consciência Negra. O projeto foi arquivado quando a Casa aprovou em 2009 outra iniciativa que apenas inseria o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra no calendário nacional, mas não na condição de feriado.

Apesar da conexão com o PT, que ajudou a criar, Luiz nutre sérias críticas a uma parcela da esquerda, que, diz ele, não só ignora a pauta racial como reproduz diversos preconceitos. "Vive em outro mundo."

O movimento negro nas asas do Ilê

Deborah Faleiros/UOL

Até 1974, Luiz Alberto tinha apenas uma percepção difusa das forças perversas do racismo. Ele tinha acabado de sair da Aeronáutica e ingressado na Petrobras. O período de efervescência política em torno da questão racial o fez abraçar a militância no movimento negro.

Surgiam grupos de discussão política, como o Núcleo de Cultura Afro-Brasileira, que debatia textos de pensadores como o psicanalista Frantz Fanon (1925-1961) e do agrônomo e político Amílcar Cabral (1924-1973), acerca do racismo contra negros e indígenas. Além disso, havia um interesse pelas iniciativas norte-americanas de orgulho negro e sua estética.

Na Bahia, um grupo de jovens negros intitulado Poder Negro se reunia na escadaria em frente ao Colégio Estadual Duque de Caxias no bairro da Liberdade, parte alta de Salvador (BA). Logo, viraria o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do país. "O Ilê surge com o papel fundamental de resgatar uma ancestralidade perdida", diz.

Era um contexto de disputa [racial]. Ao mesmo tempo em que havia um poder dos black powers, daquela exaltação da beleza negra, havia também uma violência muito grande, sobretudo com as mulheres. Era raro andar pelos bairros de Salvador e não encontrar uma placa dizendo que naquele local se alisava cabelo

Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Afrofotográfico Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Afrofotográfico
Rafael Martins/UOL

Esse amálgama de contradições foi decisivo para a criação da célula do MNU (Movimento Negro Unificado) na capital baiana, um ano após a organização ser criada em 1978 durante um ato histórico na escadaria do Teatro Municipal, no centro de São Paulo.

O ex-deputado enxerga no movimento do qual foi coordenador nacional entre 1996 e 1998 um marco na luta contra o racismo no país.

O MNU fez uma guerra contra a tão propagada democracia racial e seus defensores. Foi o movimento mais importante da luta negra no século 20, também porque surgiu em meio a uma ditadura militar

Ele ressalta, no entanto, que o grupo curiosamente sofreu com a falta de unidade, algo mantido ainda hoje.

"Se na década de 1970 a ideia era fazer algo unificado do ponto de vista da ação política no país, hoje é o oposto. Há uma pulverização da luta contra o racismo. A ação política deve ocorrer em vários espaços, mas é preciso haver um norte e uma estratégia. Sem isso, não se sabe para onde ir", explica.

Há uma pulverização da luta contra o racismo. A ação política deve ocorrer em vários espaços, mas é preciso haver um norte e uma estratégia. Sem isso, não se sabe para onde ir

Luiz Alberto Santos, ex-deputado federal

Uma ditadura no meio do caminho

Deborah Faleiros/UOL

Nascido em Maragogipe, no Recôncavo Baiano, Luiz Alberto fez a vida em Salvador. Foi à capital baiana em meados dos anos 1960 para terminar os estudos. No início da década seguinte, com ginásio concluído, desempregado, o jovem de 17 anos viu no serviço militar uma forma de afastar a pobreza que abatia a família. Em plena ditadura, a saída foi entrar para a Aeronáutica.

"Eu vivia uma vida ordinária. Não tinha nada a ver com apreço ao regime. Era uma forma de sobrevivência. Muitos negros fizeram essa opção, porque não tinham como se sustentar", conta. A passagem pela Força durou dois anos até 1973. "Eu era jovem e tinha uma perspectiva distanciada da ditadura. Com o tempo, vi que não poderia mais ficar ali", lembra.

O vínculo com a Aeronáutica foi interrompido quando uma outra oportunidade de emprego apareceu.

Quando soube da aprovação no concurso para ser vigilante da Petrobras, no início de 1974, Luiz Alberto comemorou, apesar do regime manter as estatais sob observação constante. "Eram braços da ditadura", diz.

A Bahia era estratégica. Até mesmo pelo histórico. O estado foi fundamental na consolidação dos petroleiros como categoria organizada no Brasil, pois abrigou ainda na década de 1950 o surgimento do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Petróleo, o primeiro do país.

Ainda que correndo o risco de estar na mira dos militares, Luiz Alberto entrou para a luta sindical. Conseguiu dar combatividade à organização, junto a colegas capitaneados pelo ex-sindicalista petroleiro Mário Lima (1935-2009), que teve seu mandato como deputado federal pelo PSB cassado em 1964, após o primeiro ato institucional da ditadura militar, foi preso e perseguido político e só conseguiu deixar a clandestinidade ao ser absolvido em 1971 pela Superior Tribunal Militar.

Em meados da década de 1970, os petroleiros baianos intensificaram o diálogo com trabalhadores de outras partes do país, sobretudo com os do movimento sindical no ABC Paulista, polo industrial na região metropolitana de São Paulo. A militância sindical de Luiz durou até 1994, quando se aposentou. Nesse meio tempo, ajudou a fundar a CUT (Central Única dos Trabalhadores).

"Em 20 anos, nunca fui promovido. Mudei de cargo uma vez, quando saí de vigilante para ser técnico químico. Só consegui porque teve um concurso interno. Estudei química, fiz a prova e passei. Trabalhava com análise de materiais rochosos. Tenho certeza que minha militância me impediu de subir de cargo, mas não me arrependo", conta.

Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Afrofotográfico Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Afrofotográfico

A política como destino

Deborah Faleiros/UOL

Apesar de ter ocupado cargos públicos por quase 20 anos, Luiz Alberto conta que sua militância e atuação política sempre foram feitas de bastidor, fora dos holofotes. O caminho até Brasília, assim como a permanência por lá e a participação no governo baiano de Jaques Wagner (PT), como secretário estadual de Promoção da Igualdade, entre 2007 e 2008, foi feito de disputas em torno da questão racial.

A militância política nasceu no grupo intitulado Trabalho Conjunto da Cidade de Salvador, formado por pessoas da Igreja Católica, associações de profissionais autônomos que faziam oposição ao regime militar no fim da década de 1970.

O grupo fazia ações sociais e culturais pela cidade, além de muita discussão política sob a ótica da classe trabalhadora. Nesse período, conta Luiz Alberto, a organização do grupo estava sob responsabilidade de partidos de esquerda como PCB e PC do B.

Nesse momento, percebi que a questão racial estava sempre em segundo plano. O foco dos partidos e das lideranças era nos organizar como classe trabalhadora. Eu já estava no movimento sindical e na militância contra o racismo, então sabia que as duas coisas precisavam ser combatidas de maneiras diferentes. Porém, são as mesmas lutas

Luiz Alberto Santos, ex-deputado federal

Lázaro Roberto / Zumvi Arquivo Afrofotográfico Lázaro Roberto / Zumvi Arquivo Afrofotográfico

Exemplo de como a pauta racial era vista de diferentes formas foi o que ocorreu durante 2º Congresso Brasileiro pela Anistia, em Salvador, em 1979. Lideranças do MNU pediram aos organizadores a inclusão na pauta da libertação de presidiários por crimes comuns, que eram majoritariamente negros. Entendiam que aquela situação era fruto da injustiça social e parte da repressão na ditadura.

A pauta não foi aceita, e o episódio entrou para a lista de diferenças na leitura da realidade brasileira entre os grupos políticos. Para Luiz Alberto, a "esquerda branca" vê a luta racial como algo que divide trabalhadores. Ainda assim, ele foi um dos fundadores do PT e foi deputado federal pelo partido.

Entre 1985 e 1986, uma articulação de jovens do MNU, entre eles, militantes petistas da periferia de Salvador como Ivonei Pires e Edmilton Cerqueira, identificaram nele e em Luiza Bairros (1953-2016) políticos em potencial. "Condicionei minha participação à entrada da Luiza, porque sabia que ela não ia aceitar. No fim, estava enganado", conta.

"Ela me convenceu que a luta política poderia ser importante também. Nós achávamos que não era o melhor caminho, mas que aquilo também poderia ser uma via de mudança. Esse pensamento acabou me auxiliando a decidir pelas candidaturas que vieram anos depois", complementa o ex-deputado.

Na primeira eleição, nenhum dos dois foi eleito, nem Luiz Alberto a deputado federal, nem Luiza Bairros a deputada estadual. Ambos não desistiram. Ele chegou ao parlamento no fim da década seguinte, e ela foi ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2011 e 2014, no segundo mandato de Dilma Rousseff (PT).

As posturas de ambos, porém, causavam momentos de tensões no partido. Um deles ocorreu durante uma festa em 1986 para lançar candidaturas. Ao chegar, Luiz ouviu que a vitrola tocava a música "Fricote", de Luiz Caldas, de teor racista por conter versos que depreciam madeixas crespas como "Nega do cabelo duro / Que não gosta de pentear". Inconformado, ele foi até o equipamento de som e quebrou o disco de vinil.

Tem uma parcela da esquerda branca que vive em outro mundo

Para o ex-deputado, seus mandatos sempre foram "marginais" dada a dificuldade de a pauta racial avançar no Congresso. Não tinha apoio de parlamentares da direita, tampouco encontrava guarida entre os da esquerda, diz ele.

Será que algum parlamentar branco de esquerda aceita ceder o seu lugar a uma mulher negra no Congresso? Duvido

Luiz Alberto Santos, ex-deputado federal

Uma das propostas a que mais destinou energia buscava garantir uma cota de cadeiras para pessoas negras em assembleias legislativas estaduais e na Câmara dos Deputados por um período de 20 anos. A reserva corresponderia a dois terços do percentual de pessoas declaradas pretas ou pardas no Censo do IBGE. A emenda à Constituição foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) em 2013, mas não foi a plenário. Após dois anos, foi arquivada.

Para ele, a proposta difere do que foi aprovado recentemente na reforma eleitoral, que garante às siglas uma fatia maior do fundo partidário ao lançarem candidaturas negras.

"É bem intencionada, mas por si só não resolve o problema. Isso significa monetizar a participação negra no Parlamento. Há um esvaziamento do debate político que esse tema exige. O problema é que estamos vendo uma busca pela grana, não a discussão racial."

Como parlamentar, Luiz Alberto não conseguiu aprovar nenhum projeto de impacto de sua autoria. Ainda que tenha passado por um Congresso que ele classifica como "árido", ele se orgulha de ter criado a Frente Parlamentar pela Defesa da Igualdade Racial. A iniciativa suprapartidária composta por deputados e senadores pretendia arejar e estimular o debate contra o racismo.

"Teve adesão, eram 107 integrantes, mas isso não significa que as pessoas sejam antirracistas. É uma deferência a mim, algo muito mais político do que um engajamento na causa. Mas é preciso lutar com as armas que se tem", explica.

Luiz Alberto diz que foi sondado por colegas de partido para uma candidatura em 2022, mas não aceitou. Ele prefere apoiar novos quadros. Entre os quais, cita a socióloga baiana Vilma Reis, que foi preterida pelo PT na disputa interna pela indicação à candidatura para a prefeitura de Salvador.

Essa geração precisa ir pra arena. Não há saída individual para os negros no Brasil. A ação precisa ser coletiva. Ou então vamos continuar morrendo

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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