Por um bom combate

Ao criar o Movimento Negro Unificado, Miltão desafiou a ditadura para a questão racial ir da política ao rap

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo André Lucas/UOL

Enquanto se preparava para tirar fotos na escadaria do Theatro Municipal, no centro de SP, o homem negro, um senhor septuagenário de cabelos e barba brancos, é surpreendido. Um estranho reconhece ele e a sua companheira de mais de 25 anos, Regina Lúcia dos Santos. Pede para tirar uma selfie e vai embora.

Naquele mesmo lugar, mas em 7 de julho de 1978, Milton Barbosa, o Miltão, reuniu uma multidão para protestar contra o racismo. Fato raro, colocou na mesma manifestação gente da direita e esquerda, que, desafiadora, ignorava a ditadura em vigor. Nascia ali o MNU (Movimento Negro Unificado), que viria a se tornar o principal movimento social do país em torno da pauta racial.

Não é exagero dizer que a luta contra a discriminação racial no Brasil é feita de um antes e depois de Miltão. Mas ele mesmo tem um antes e vários depois, ainda inexplorados. É o menino criado sem pai que caiu no samba. O metroviário que esnobou a USP. O homem que aglutinou em torno de si figuras importantes e referências na luta racial, como os intelectuais e ativistas Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994). O militante que ajudou o PT, mas caiu fora pela falta de espaço. O ativista que distribuía jornais na porta do baile com a mesma seriedade que subia ao palco para falar ao lado dos Racionais.

Ao longo da conversa com Ecoa para reviver aspectos de sua vida, Miltão tropeça em fendas que se abrem na memória. A cada novo salto no passado, explica algo do fortalecimento do movimento negro no país, navegando entre o que se lembra e o que se pode contar. Entre um e outro, o septuagenário parece ter mais vida - e histórias - do que a própria vida é capaz de suportar - e de guardar.

Milton Barbosa nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, mas suas raízes estão fincadas mesmo é no Bixiga, centro da capital paulista, na Vila Joaquim Antunes, para onde foi com 3 anos. Ele cresceu sem conhecer o pai, mas conta que supriu a ausência paterna com a interação com os mais velhos.

"Tinha os preto véio, seu Adolfo, o filho dele, seu Luiz, que nos protegiam das maldades, nos educaram diante de situações adversas", afirma. Durante uma briga ou discussão no bairro, repleto de imigrantes italianos e espanhóis, os vizinhos vez ou outra apelavam para a agressão racial como forma de mostrar alguma superioridade, diz. "Eu não entendia, mas já percebia uma forma de atacar a pessoa negra só pela cor da pele."

Outro dos nomes que povoaram sua infância é o da primeira professora Dona Toca, na casa de quem ele e a irmã assistiam a apresentações de piano e violino. "Esses momentos penetraram em mim. Começamos a valorizar a intelectualidade, o pensamento e a informação", comenta.

Ainda assim, o trabalho em tapeçarias e marcenarias fez Miltão largar a escola dos 14 aos 19 anos. "Precisava conhecer outras coisas", brinca. Conheceu. Descobriu a Vai-Vai, tradicional escola de samba no Bixiga, onde ele e os amigos ficavam divididos entre a diversão e o aprendizado, nas conversas com seu Chiclé e Pé Rachado, respectivamente José Jambo Filho e Sebastião Eduardo do Amaral, ex-presidentes da escola.

Quando os militares chegaram ao poder, em 1964, não estava no horizonte do rapaz de 16 anos fazer frente à repressão. "Vira e mexe, aparecia policial na vila dizendo que tinha torturado, quebrado dedo de militante. Eu ficava olhando de canto, desconfiado, porque não estava envolvido na militância política. Hoje, acho que foi bom. Sem estratégia, eu poderia ter sido preso e morrido." Nessa época, o futuro líder ativista ainda era mais sambista e via com desconfiança o pessoal da militância.

"A relação do movimento negro com o samba foi fundamental para entendermos e articularmos ações contra o racismo. O movimento negro aprendeu muito dentro da escola. Os dirigentes, por vezes, tinham uma postura dócil, subserviente, mas era uma maneira de ganhar o aparelho público. A gente queria o enfrentamento, então rolava uma desconfiança. Mas depois entendemos que são estratégias diferentes, sem prejudicar a festa e a estrutura deles", comenta.

O black power na universidade branca

Deborah Faleiros/UOL

A fase da curtição estava boa, a gandaia era sempre convidativa, mas Miltão decidiu retomar os estudos para dar um rumo à própria vida. Cursou a "madureza", antigo supletivo e atual EJA (Educação para Jovens e Adultos), destinado a quem vai terminar a escola fora da idade, e fez cursinho pré-vestibular. Aos 22 anos, entrou para o curso de Economia na USP (Universidade de São Paulo), um dos mais concorridos do país e preenchido por uma maioria de estudantes brancos.

Um episódio dá o tom do que ele enfrentou na universidade. No dia da matrícula, Miltão chegou com seu black power e parecia ser o alvo preferido dos veteranos, ansiosos por cortar seu cabelo. "Os boys vieram pra cima de mim querendo me zoar. Fui mais esperto: fiz uma voz mirrada, dei uma encolhida no ombro e disse que estava lá para acompanhar o filho do meu patrão. Aí, me deixaram quieto." No primeiro dia de aula, em meio à turba de carecas, Miltão apareceu com os fios intactos.

Ninguém se atreveu. Avisei que ia ter porrada se alguém mexesse no meu cabelo

Rosa Gauditano/StudioR Rosa Gauditano/StudioR

A ação política na prática

Deborah Faleiros/UOL
Lucas Figueiredo/CBF

Dos cinco anos que frequentou a USP, apenas o primeiro foi dedicado aos estudos, e Miltão nunca se formou. "Estava mais interessado em mobilizar os estudantes, dialogar sobre a construção do movimento negro", conta. Parte do desencanto também foi intelectual. "Davam muita atenção a autores a serviço do capital", lembra. Ainda assim, as visitas não foram em vão. "Li muito Marx, Lenin, Trotsky. Fazíamos encontros periódicos com os sociólogos Florestan Fernandes [1920-1995], Clóvis Moura [1925-2003], Eduardo de Oliveira e Oliveira [1923-1980], alguns membros da Frente Negra Brasileira ainda vivos."

O diálogo com figuras do mais importante movimento negro brasileiro da primeira metade do século 20, como os jornalistas José Correia Leite (1900-1989) e Henrique Cunha [1908-2006], rendia aprendizado, mas também desavenças. Quando questionado pela reportagem sobre que rusgas seriam essas, Miltão desconversa. Acompanhando a entrevista, a também líder do MNU Regina Santos cutuca o parceiro: "Ele quer saber de como vocês resolviam os conflitos com o pessoal da antiga". "Eu sei o que ele quer saber", devolve Miltão, para escapar pela tangente na sequência: "Política é a arte da contradição".

Nessa época, Miltão era técnico de métodos operacionais no Metrô de São Paulo e treinava os operadores de caixa. O trabalho de formação política com os estudantes da USP durou até 1978 e também envolveu trabalhadores na Liga Operária, grupo que esteve na gênese do PT (Partido dos Trabalhadores) e que servia de apoio nas discussões trabalhistas na ausência de sindicatos fortes. "Até existia, mas era tudo pelego", comenta. Fora isso, Miltão não via a questão racial ganhar espaço em meio a debates sobre baixos salários e outros assuntos.

Por outro lado, essa discussão motivava outras organizações na qual Miltão se embrenhou como o Cecan (Centro de Cultura e Arte Negra), o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, a Câmara de Comércio Afro-Brasileiro e o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras.

As fagulhas 

Deborah Faleiros/UOL

No mesmo período em que as organizações negras começaram a ganhar forma e unidade, manifestações de operários iniciadas no fim da década de 1960, como em Contagem (MG) e no ABC paulista, já haviam sido duramente repreendidas, com prisão de manifestantes e perseguição política.

O aparato repressor não estava preocupado apenas com a luta armada, mas também com movimentos de contestação social, econômica e política que surgiam naquele período. No que diz respeito à questão racial, havia um outro componente: a ditadura militar não estava confortável com a possibilidade de surgir um grupo que pudesse desarticular o projeto de nação que definia o Brasil como um país harmonioso racialmente. A ideia era evitar que grupos como os Panteras Negras, dos EUA, surgissem por aqui. O embrião da organização que nasceu nas escadarias do Theatro Municipal em 7 de julho de 1978 estava ali, mas faltava uma fagulha. Surgiram duas.

A primeira delas foi a morte de Robson Silveira da Luz, homem torturado por policiais militares sob acusação de roubar frutas na feira. Ele era primo de Rafael Pinto, amigo de Miltão desde a adolescência e outro fundador do MNU. O outro estopim foi um caso de racismo envolvendo quatro jovens negros expulsos do time juvenil de basquete do Clube de Regatas Tietê.

Nós juntamos todo mundo, porque era preciso naquele momento mostrar união contra o que estava acontecendo. Era gente da esquerda, centro, centro-direita, direita. Era preciso ser desse jeito. Depois, com o tempo, cada um foi para o seu lado. Mas o 7 de julho foi uma explosão, com repercussão no mundo inteiro. Pessoas de África, EUA, Europa, querendo entender o que era o MNU e aquela mobilização

Milton Barbosa, o "Miltão", fundador do Movimento Negro Unificado

Rosa Gauditano/StudioR Rosa Gauditano/StudioR

Uma das preocupações do MNU, diz Miltão, sempre foi estabelecer vínculos com a rua, ou seja, levar o debate para quem sofre com o racismo, mas não está inserido na luta. O diálogo com a classe trabalhadora era parte desse processo, assim como a distribuição do jornal "Árvore das Palavras", na década de 1970. Com linguagem simples e coloquial, a publicação era entregue na porta de festas e bailes, com base em experiências em Angola e Moçambique. "Assim como o teatro e a música, essa era uma forma de transmitir informação para a negrada", explica.

A proposta de tomar os espaços públicos se intensificou na década de 1980. Havia proximidade com partidos políticos e dirigentes de siglas variadas, sobretudo na esquerda. Miltão se candidatou a deputado federal pelo PT, nunca se elegeu e possui até hoje críticas à legenda. "Era mais para marcar posição, nunca fiz campanha. É muita sacanagem. A gente ajudava a filiar as pessoas negras, indicava os lugares onde ir, o que falar e ficava de fora na hora de discutir as candidaturas e cargos importantes do partido."

No início dos anos 1990, o enfrentamento sistemático da violência policial, com cursos e seminários, fez Miltão se ligar em um ritmo musical que começava a fazer a cabeça de jovens negros e periféricos. A aproximação dos Racionais MC's ajudou o MNU a chegar a um novo público. "Estive na Fundação Casa com Mano Brown, Edi Rock, fizemos algumas campanhas contra a violência policial. Era uma articulação importante", diz.

Mais de 40 anos depois da criação do MNU, Miltão vê o movimento passando por mais uma fase de reconstrução. "Tem uma garotada muito boa chegando, atualizando nossas diretrizes, compondo outras organizações, como a Coalizão Negra por Direitos. Seguimos na luta", diz. A princípio, ele evita fazer um balanço de sua atuação. "Isso quem tem que dizer são os outros", brinca. No fim, arrisca:

O custo é alto, há muito sacrifício, mas a gente supera e vê as coisas avançarem um pouco. Tudo isso vai nos calejando para uma luta que é sistemática. Entre erros e acertos, acredito que travei o bom combate

Milton Barbosa, o "Miltão", fundador do Movimento Negro Unificado

Rosa Gauditano/StudioR Rosa Gauditano/StudioR

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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